sábado, 18 de junho de 2016

Devastação do Rio Doce: é urgente rever a privatização da Vale!


SERGIO CRUZ


Dra. Clair da Flora Martins é advogada, presidente do Instituto Reage Brasil, ex deputada Federal e autora de uma das Ações Populares que questiona o leilão de privatização da Vale do Rio Doce.
Um dos maiores crimes cometidos contra o patrimônio público brasileiro, a entrega da Vale do Rio Doce, a maior produtora de minério de ferro do mundo, a grupos privados, por Fernando Henrique Cardoso, em maio 1997, precisa urgentemente ser revisto. O leilão, que levou milhares de patriotas às ruas para barrá-lo, está até hoje sub judice. Mais de uma centena de ações civis públicas questionando as irregularidades do processo – entre elas a da ex-deputada Dra. Clair Martins – esperam uma decisão final da justiça. Ou seja, todo o processo foi ilegal, uma apropriação criminosa dos bens da nação.


A Vale foi vendida por míseros R$ 3,34 bilhões, quando seu patrimônio chegava, segundo alguma estimativas, a R$ 92 bilhões. Outras afirmavam ser ainda muito maior o seu valor. Um verdadeiro escândalo. E quem a adquiriu no leilão ainda recebeu de brinde gordos investimentos subsidiados do BNDES, isenções fiscais (Lei Kandir) e um presente de R$ 700 milhões em recursos que estavam no caixa da empresa no dia da negociata. Para se ter uma ideia do quanto foi subestimado o valor de venda da Vale, só em um, 2006, o lucro da empresa foi quatro vezes superior ao valor total da venda.
A indigência da gestão privada e monopolista não demorou a se mostrar claramente ao conjunto do país. Sequiosa por super lucros, a mineradora patrocinou a exploração predatória de nossos minérios e a sua sangria indiscriminada para o exterior. Não podia ser outro o resultado. A ruptura – por falta de manutenção e fiscalização – da barragem de rejeitos da Samarco em Mariana, Minas Gerais, empresa controlada pela Vale e a anglo-australiana BHP, causou a destruição de todo o vale do Rio Doce, desde Minas até o litoral do Espírito Santo. Nunca se viu tanta lama tóxica e tanta destruição ambiental no país. O maior crime ambiental de toda a nossa história.
Em entrevista exclusiva ao HP/ASOL a ex-deputada Dra. Clair Martins, advogada e uma das principais responsáveis pelas mobilizações e pelos questionamentos jurídicos à privatização, fala sobre a luta pela re-estatização da mineradora.
HP/ASOL: A senhora acha possível a re-estatização da Vale?
Clair: Acho perfeitamente possível a Declaração da Nulidade do Leilão pela Justiça, pois as ações estão bem embasadas. Estou percorrendo diversos Estados onde a Vale tem presença ativa para mobilizar entidades, organizar os militantes e os profissionais que deverão estar à frente desta luta e nos ajudando na reavaliação do patrimônio da Vale do Rio Doce, cujas ações foram vendidas a preço vil, para não dizer, a preço de banana. Recentemente estivemos em Belo Horizonte onde participamos de um Tribunal Popular que julgou e condenou a Samarco e a Vale pelos crimes que cometeu em Bento Rodrigues, em Mariana, na região e em todos os Estados onde a lama contaminou a água, os mares e oceanos. A sociedade quer, e é o que nós desejamos, sobretudo, que estes recursos minerais sejam explorados de uma forma sustentável e que beneficie o conjunto da população.




Tribunal popular na Praça Sete de Belo Horizonte criado em abril para julgar os crimes da Samarco e da Vale
HP/ASOL: A senhora participou de toda luta – tanto nas ruas quanto nos tribunais – contra a privatização da Vale do Rio Doce. Pode nos descrever os principais momentos dessa batalha?
Clair: Participei ativamente das mobilizações sociais contra a Privatização da Vale do Rio Doce. No Paraná organizamos o Movimento Reage Brasil com a participação de várias entidades e personalidades e nos integramos na campanha nacional contra o Leilão que licitava 41,73% das ações ordinárias da União e foram vendidas por R$ 3,338 bilhões de reais. Conseguimos reverter, na época, a opinião pública que no início era favorável à licitação e ao final da campanha e antes do leilão se manifestava majoritariamente contra, graças ao empenho e dedicação de muitos patriotas. Houve mobilizações em vários estados, com grande participação popular. Ao lado das manifestações populares, organizamos também ações jurídicas para impedir o leilão, pois entendíamos que a Vale não deveria ser incluída no Plano de Desestatização e também o edital estava eivado de nulidades.
HP/ASOL: Qual a importância da Vale do Rio Doce para o país e por que, na sua opinião, ela deve ser pública?
Clair: Mais do que nulidades do edital, entendíamos que a Vale era uma empresa estratégica para o desenvolvimento nacional e que a maioria das ações ordinárias deveriam permanecer nas mãos do Estado. O Decreto lei 4352/1942 que criou a Vale que ainda continua em vigência acentua estes objetivos conforme artigo 6º, § 7º que dispõe: “O dividendo máximo a ser distribuído não ultrapassará de 15% e o que restar dos lucros líquidos constituirá um fundo de melhoramentos e desenvolvimento do Vale do Rio Doce, executados conforme projetos elaborados por acordo entre os Governos dos Estados de Minas Gerais e do Espírito Santo, aprovados pelo Presidente da República. Por essa ideologia neoliberal que norteou o mencionado leilão, o Brasil continua explorando predatoriamente os recursos naturais e minerais como no Brasil colônia, exportando matéria prima, degradando o meio ambiente e impondo condições sub humanas aos trabalhadores e população do entorno, não contribuindo com o desenvolvimento da região ou do país como poderia, dada grandeza de seu patrimônio;
HP/ASOL: Quais foram as principais irregularidades cometidas no processo de privatização da Vale? Em que pé está a batalha jurídica pela anulação do leilão?
Clair: Dezenas de ações populares foram propostas por patriotas brasileiros em vários estados, antes do leilão. Estas foram remetidas à Belém do Pará, por uma manobra jurídica, à época. O Juiz da Vara Federal, em 2002, julgou improcedente cinco ações e extinguiu as restantes sem a apreciação do mérito, entendendo que o fato estava consumado, face o leilão ter sido realizado. O processo seguiu para o TRF da 1ª Região em Brasília e a quinta turma, em 2005, anulou a decisão que extinguia os processos, sem a análise de seus fundamentos e pedidos e determinou que os processos deveriam retornar ao juízo de origem para que fosse feita uma reavaliação do seu patrimônio e que fossem apreciados todos os fundamentos e pedidos das ações populares.
Houve alguns recursos junto ao STJ e ao STF que suspenderam o retorno destes processos à Belém, mas já não há impedimento para que isto aconteça. Assim, esperamos que, em breve, os processos voltem ao juízo de origem para que a realização de uma perícia sobre o patrimônio da Vale do Rio Doce e também para o julgamento dos pedidos constantes das ações populares. Nestas ações se questiona: a nulidade do edital por vários vícios, entre os quais: os critérios da avaliação, a parcialidade da corretora que fez a avaliação do patrimônio da Vale, a existência de urânio (minério cuja exploração é privativa da União), a inserção de Carajás no edital de leilão que não havia sido avaliada, a subavaliação do seu patrimônio, etc.
Há a possibilidade de se declarar nula a licitação, dependendo da mobilização social em torno desta bandeira, pois sabemos da pressão que o Judiciário sofrerá para dar esta decisão numa cidade como Belém, onde a economia do Estado gira em torno da Vale do Rio Doce. Também podemos conseguir o ressarcimento dos recursos à União pela subavaliação do seu patrimônio e pelos prejuízos que sofreu no decorrer destes anos. Estamos mobilizando os profissionais de diversas áreas e todas as entidades a nos ajudarem a realizar a perícia sobre o patrimônio da Vale do Rio Doce que será realizada nos diversos Estados onde a Vale tinha inserção.
HP/ASOL: O argumento da suposta superioridade da gestão privada sobre a pública para justificar a privatização da Vale desabou com a gigantesca tragédia de Mariana – um dos maiores crimes ambientais do mundo – e o prejuízo de R$ 42 bilhões da empresa em 2015. Como você avalia isso?
Clair: A gestão pública da Vale sempre foi um sucesso. Os lucros eram reinvestidos na empresa para que ela pudesse contribuir com o desenvolvimento do país, como ocorreu, em cumprimento ao Decreto lei que a criou. Segundo publicação especializada, datada da época da privatização,” a Vale era a principal exportadora do Brasil (líder no mercado mundial de minério de ferro), maior produtora de alumínio e ouro da América Latina; possuía e operava dois portos de grandes dimensões, a maior frota de navios graneleiros do mundo, além de 1.800 quilômetros de ferrovias brasileiras; possuía reservas comprovadas de 41 bilhões de toneladas de minério de ferro, 994 milhões de toneladas de minério de cobre, 678 milhões de toneladas de bauxita, 67 milhões de toneladas de caulim, 72 milhões de toneladas de manganês, 70 milhões de toneladas de níquel, 122 milhões de toneladas de potássio, 9 milhões de toneladas de zinco, 1,8 milhões de toneladas de urânio, um milhão de toneladas de titânio, 510 mil toneladas de tungstênio, 60 mil toneladas de nióbio e 563 toneladas de ouro. Além disso, dispunha de 580 mil hectares de florestas replantadas, de onde extraia matéria-prima para a produção de 400 mil toneladas/ano de celulose.” (Fonte: Revista Dossiê Atenção – “Porque a venda da Vale é um mau negócio para o país”, fls. 282/292, da Ação Popular nº 1997.39.00.011542-7/PA)( Trecho extraído da decisão do TRF1). A gestão privada visa o lucro, sem se preocupar com o desenvolvimento da região, ou do país, com o meio ambiente ou com o bem estar dos trabalhadores e da população. A exploração dos recursos minerais é predatória. Não se preocupa sequer com a segurança dos trabalhadores, como é o que aconteceu com a tragédia de Mariana, onde muitos morreram, rios, mares e oceanos foram poluídos e contaminados, a flora e a fauna da região destruídas, as casas e animais soterrados pela lama da barragem que desabou. Tenho certeza que, numa gestão pública, estes recursos seriam aplicados em prol do desenvolvimento do país, da região, que é o que ainda queremos, Por isto lutamos!
As irregularidades cometidas no ato da privatização
O Bradesco financiou também duas empresas de fachada montadas nos EUA para o leilão da Vale. Assim, os fundos Sweet River e Eletron, ambos de Daniel Dantas, receberam empréstimos no dia do leilão na forma de debêntures conversíveis, ou seja, que poderiam ser convertidas em ações em caso de não pagamento do empréstimo. O óbvio aconteceu. Dantas não pagou. Dessa maneira o Bradesco – uma das instituições que participou da avaliação da Vale – tornou-se seu maior proprietário privado. A ação popular, da então deputada federal Dra. Clair Martins, aponta estas irregularidades, e acrescenta ainda a relação da consultora americana Merrill Lynch com o Grupo Anglo American, outro integrante do consórcio que venceu o leilão.
Outra violação da lei nesse leilão foi a transferência de milhões de hectares à propriedade dos acionistas estrangeiros da empresa. Isso se deu mediante a venda no exterior dos títulos da Vale, quando a legislação impede a alienação de mais de dois mil hectares a estrangeiros sem a aprovação das Forças Armadas e do Senado da República.
“O que as ações querem é o exame judicial dos fundamentos das ações sobre as nulidades do edital do leilão e uma perícia sobre a realidade do patrimônio leiloado, definindo o verdadeiro valor do acervo da CVRD. Se for confirmado que houve sonegação e subavaliação de bens, as decisões pela nulidade da venda de 1997 será coisa certa”, disse, na ocasião, a deputada Dra Clair.
Entre os réus estão a União, o BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social) e o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso. Eles são acusados de subvalorizar a companhia na época de sua venda. Segundo as denúncias, em maio de 1995 a Vale informou à Securities and Exchange Comission, entidade que fiscaliza o mercado acionário dos Estados Unidos, que suas reversas de minério de ferro em Minas Gerais eram de 7.918 bilhões de toneladas. No edital de privatização, apenas dois anos depois, a companhia disse ter somente 1,4 bilhão de toneladas. O mesmo ocorre com as minas de ferro no Pará, que em 1995 somavam 4,97 bilhões de toneladas e foram apresentadas no edital como sendo apenas 1,8 bilhão de toneladas.
Nesta época, Lula já governava o país e, por este fato, alguns setores estavam convencidos de que as chances do cancelamento eram boas. Um grande plebiscito foi convocado em todo o Brasil. Em entrevista na época, a deputada Clair falou sobre a consulta. “Este plebiscito é uma prova viva de que a sociedade civil nunca vai aceitar passivamente este escândalo que é a transferência de nossas riquezas para as mãos de alguns poucos acionistas, em sua maioria de estrangeiros. O plebiscito é uma reação de quinhentos anos a exploração da Nação brasileira. Esta consulta popular vai ser o divisor de águas do governo Lula. Ou ele assume uma postura de defesa dos interesses brasileiros, ou se alia aos exploradores, aos vendilhões”, sentenciou a deputada, pouco antes da realização do plebiscito.
Em 2007 o plebiscito foi realizado e 64 entidades da sociedade ouviram, entre 1º e 7 de setembro de 2007, três milhões e setecentos mil brasileiros, em 3.157 municípios do país. O resultado foi inquestionável: 94,5% votaram pela re-estatização da Vale. O resultado do plebiscito foi levado então ao governo do presidente Lula. Juristas diziam que, “tendo a privatização ocorrida no governo passado, o atual governo teria todo o direito de, na representação do interesse nacional, intervir no feito, a fim de recuperar os ativos alienados”.
A declaração de Lula de que o governo não pretendia rever a venda da Vale, apesar do resultado da consulta, provocou surpresa a todos. “O posicionamento do presidente foi uma reação que não esperávamos”, disse Julio Turra, então dirigente da Central Única dos Trabalhadores.
Campanha mentirosa dos tucanos contra a Vale
FHC mentiu descaradamente ao dizer que a Vale dava prejuízo. Ele falseou a verdade para justificar sua venda. A Vale dava lucro desde 1954 – com um pequeno interregno na crise energética da década de 1970 – e já era esperado que esse lucro desse um salto à frente em sua dimensão. O geólogo Francisco F.A. da Costa, ex-superintendente de Pesquisas da Vale e ex-presidente da Docegeo, publicou, no Diário do Pará, na época da privatização, um artigo que explica porque a empresa foi escolhida como a primeira a ser privatizada. Disse ele: “A lucratividade da Vale aumentará muito no futuro próximo, devido a dois fatores: liquidação da dívida de Carajás e abertura de grandes e lucrativas minas de ouro. Este aumento de lucratividade, resultado de décadas de administração competente sob regime estatal, será mentirosamente atribuído à privatização. Economistas bisonhos louvarão as virtudes da privatização e apresentarão a Vale como exemplo. A economia deixou de ser uma ciência séria e se transformou em uma numerologia enganadora, a serviço dos interesses dominantes”.
É exatamente o que ocorreu. Só que hoje esse lucro vai para os cofres de uma empresa privada e monopolista. Hoje quem tem mais poder na Vale é quem tem as ações preferenciais (ADR), que são ações negociadas na Bolsa de Nova Iorque. Os possuidores dessas ações, na maioria especuladores americanos, estão recebendo uma remuneração gigantesca. E o país só vê a empresa fazer exploração predatória de suas riquezas, sonegar impostos, e destruir a natureza. Depois que caiu a máscara da “superioridade” da gestão privada e que começam a aparecer os prejuízos bilionários provocados por essa gestão irresponsável (- 42 bilhões de reais em 2015), é hora de retomar a luta pela anulação imediata da privatização da Vale e sua devolução para o povo brasileiro.
Pequeno histórico da mineradora criada por Getúlio Vargas

Esta empresa foi construída com imensos sacrifícios do povo depois da revolução de 1930. A Vale foi criada em 1° de junho de 1942 por Getúlio Vargas. Ela foi o resultado da nacionalização e encampação da Itabira Iron Ore Company, do norte americano Percival Farquhar que, em 1911, adquiriu dos ingleses todas as ações do Brazilian Hematite Syndicate, e mudou seu nome para Itabira Iron ( ver matéria mais detalhada nesta edição). A luta contra os planos dos ingleses e de Faquar fazem parte da história do Brasil. A Vale, assim como a Petrobrás, são símbolos da luta do povo brasileiro e também da nossa nacionalidade. Sua defesa se confunde com a defesa do Brasil.
Como descreveria o jornalista Lúcio Flávio Pinto, “o país obteve os empréstimos do Eximbank para a exploração das minas do Cauê e para indenizar os acionistas ingleses da Itabira Iron, mediante os Acordos de Washington, de 1942”. “Esses acordos nos exigiram, de contrapartida, a cessão das bases do Nordeste para as operações das forças norte-americanas, o fornecimento de ferro para o esforço de guerra e o envio de tropas brasileiras para o conflito na Europa. Ali perdemos vidas valiosas. Não investimos na Vale somente os recursos do Erário; investimos em sangue, investimos em coragem, investimos na dignidade do patriotismo”, destacou Lúcio Flávio.
Em 1962, já sob Jango, a Vale já produzia cerca de 8 milhões de toneladas de minério de ferro. Com a criação da Docenave, em 1962, e com a inauguração do Porto de Tubarão, em 1966, a Vale entrou numa nova fase, com sua produção passando de 10 milhões de toneladas/ano em 1966 para 18 milhões em 1970 e atingindo a marca de 56 milhões de toneladas/ano em 1974, ano em que assumiu a liderança mundial na exportação de minério de ferro, a qual nunca mais perdeu.
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