domingo, 13 de setembro de 2015

A crise é do sistema

Delfim Martins / Blog do Planalto


Os desajustes econômicos e o afloramento de escândalos de corrupção nos negócios e na política, temas dominantes dos debates que monopolizam atualmente a atenção dos brasileiros, são apenas os sintomas do mal funcionamento de um capitalismo periférico que tomou forma no país a partir da redemocratização, especialmente dos anos 90. 

Capitalismo que não tem se mostrado capaz, de construir uma rota autônoma para o processo de desenvolvimento nacional, a exemplo da China, da Índia e da Coreia do Sul, e que faz da integração dependente na economia internacional e de formas ilícitas de realização de negócios e corrupção na política, a estratégia de acumulação de riqueza e manutenção no Poder de sua elite dirigente.     



O resultado desse processo tem sido, no plano econômico, a progressiva submissão da economia nacional ao capitalismo de livre mercado, patrocinado e comandado pelas grandes potências, sob a égide do capital financeiro, cujas regras do jogo definidas nos termos do chamado neoliberalismo, renegam a mobilização do Estado para reduzir as desigualdades sociais e para direcionar as decisões empresariais para o fortalecimento do sistema produtivo nacional.

No plano político, a principal consequência tem sido a conformação de um sistema político de baixa representatividade social, porquanto controlado pelo poder econômico das grandes empresas que financiam o processo eleitoral e alimentam a realização de fraudes nas relações de negócios entre empresas públicas e privadas e o pagamento de propinas a políticos.  

A essa forma de integração e subordinação ao capitalismo internacional são inerentes o baixo dinamismo econômico, a prevalência de grandes desigualdades sociais e a concentração da renda nas mãos de minorias, o desemprego endêmico, a vulnerabilidade externa, o atraso tecnológico etc.

A opção pela integração dependente na economia internacional, torna-se explícita, quando os governos Collor e FHC adotaram as políticas macroeconômicas ditadas pelo Fundo Monetário Internacional e o Banco Mundial, liberalizaram os mercados de bens e de capitais, promoveram a privatização dos complexos industriais estatais e desmontaram os mecanismos de planejamento do governo federal.





A eleição de Lula em 2002, representou a reação das forças populares diante dos maus resultados do projeto neoliberal, cuja concepção livre mercadista e dependente de centros de decisão do exterior, não se mostrou apto a enfrentar os desafios de natureza estrutural do sistema econômico, de modo adequá-lo a um melhor aproveitamento das potencialidades do país para o atendimento das necessidades da população.

Os governos populares de Lula e Dilma aproveitaram a conjuntura favorável do mercado internacional de produtos primários, propiciada pelo aparecimento da China como grande importador desses produtos, para tentar reformar as bases do sistema econômico, através de um modelo alternativo de ação governamental no qual o Estado tivesse papel ativo na promoção e orientação de investimentos produtivos e na ampliação dos direitos sociais da população, o qual foi denominado de “social-desenvolvimentismo”.  

Entretanto, como a política econômica, especialmente a macroeconômica, não pôde ser alterada substancialmente, o esforço realizado não se mostrou inteiramente eficaz.  Tão logo cessaram os estímulos positivos do comércio exterior, os efeitos da crise internacional, iniciada em 2008, se fizeram sentir

Internamente, não obstante os esforços do governo para manter a economia em expansão.

No campo do combate às práticas delituosas nas relações interempresariais e na influência do Poder Econômico no processo eleitoral, há sinais de mudança graças às mudanças legais, de iniciativa do governo, e a liberdade de ação concedida aos órgãos responsáveis por sua coibição e penalização. As últimas eleições, entretanto, ainda levaram à constituição de um Poder Legislativo pouco representativo dos interesses populares e altamente comprometido com a adoção ações regressivas na política social.

Os graves desequilíbrios sob a formas de crescentes déficits no balanço de pagamentos, aumento das pressões inflacionárias, desajuste nas contas fiscais e desalinhamento dos preços de energia e combustíveis, que constituem o cardápio com que se defronta a política econômica atualmente não são mais do que os reflexos do mal funcionamento de uma estrutura econômica que é funcional para aumentar o grau de subordinação da economia ao capital financeiro internacional e para fortalecer  a classe capitalista interna a ele associado, cujos interesses são contraditórios com os da construção de uma economia nacional comprometida com o bem-estar da classe trabalhadora.  








As forças políticas populares, que se organizaram em torno do projeto social-desenvolvimentista, incluindo o atual governo, acham-se atualmente sob forte pressão das forças que defendem o aprofundamento do projeto neoliberal, que visa a todo custo destruir e desmantelar as políticas sociais e os programas de investimento e financiamento conduzidos pelos governos do PT sob o patrocínio de empresas estatais.

O aparecimento de um déficit fiscal nominal de 6,7% do PIB, em 2014, em decorrência da estagnação do crescimento econômico, mostrou claramente a incompatibilidade entre o aumento dos gastos públicos em programas de investimento e na área social, o pagamento de altas taxas de juros da dívida pública, e a baixa tributação dos lucros e dividendos distribuídos pelas empresas, instrumental para expandir a riqueza dos bancos e dos rentistas.

Não sem razão, portanto, o déficit fiscal transformou-se no principal campo de disputa entre as forças políticas que estão por trás dos projetos neoliberal e social-desenvolvimentista.

A disputa se dá em torno da intensidade e da distribuição dos custos do ajuste fiscal que é inexorável realizar, sob pena de o aumento descontrolado da relação dívida pública/ PIB. Os neoliberais defendem um ajuste de choque e alta intensidade, mediante cortes profundos nos gastos sociais, deixando intocados os juros da dívida pública e os impostos sobre as altas rendas.

Os desenvolvimentistas se posicionam em favor de uma correção gradual do desequilíbrio e de seu financiamento com o aumento na carga tributária sobre os ricos e a redução dos juros da dívida pública.

Numa primeira rodada, os neoliberais levaram nítida vantagem, com a realização de cortes importantes nos gastos governamentais, mas não inteiramente suficientes para arcar com os custos da dívida pública.

Os cortes dos gastos públicos e o aumento da taxa de juros produziram um aumento do déficit fiscal pelo forte impacto recessivo na economia, com uma queda esperada do PIB de 2,5% em 2015, produzindo reações de resistência ao aprofundamento dos cortes, entre setores do empresariado produtivo afetados pela recessão.

Mas, o sistema financeiro e seus porta-vozes externos e internos permanecem firmes na defesa de um ajuste fiscal profundo com base no corte dos gastos sociais.










No campo da política cambial observa-se um consenso entre neoliberais e desenvolvimentistas quanto à necessidade de deixar o real desvalorizar-se, o que certamente trará efeito benéfico sobre a redução do desequilíbrio na conta corrente do balanço de pagamentos. Os custos da desvalorização tendem a pesar bastante no orçamento da classe trabalhadora, que vinha se beneficiando anteriormente dos preços subsidiados dos produtos importados. Os custos eram arcados pelas empresas exportadoras, especialmente de produtos primários. Resta saber, agora, qual será a reação de muitas empresas que estão endividadas em moeda estrangeira, especialmente se a taxa de juros nos Estados Unidos for aumentada. 

No campo da política monetária, a sociedade acha-se inteiramente refém das ações do Banco Central para controlar as pressões inflacionárias mediante a aplicação do regime de metas de inflação, cujo instrumento básico é a elevação da taxa de juros. Estima-se que os juros reais da dívida pública já representam 8% do valor do PIB em doze meses, percentual que está muito além do que é possível conseguir atingir com cortes dos gastos públicos. Portanto, a relação dívida pública/PIB deverá ser crescente nos próximos anos.

No que respeita à remuneração do trabalho as políticas recessivas adotadas já produziram perdas substanciais na massa real de salários, em decorrência do aumento da taxa de desemprego e da queda do nível do salário médio real. Os neoliberais pleiteiam, ainda, mudança na política de reajustes do salário mínimo para evitar aumentos reais no futuro.

A classe dominante, nos momentos em que se agravam os problemas econômicos e políticos derivados das contradições na forma de organização social criada para favorecê-los, tende normalmente a concentrar a atenção nos sintomas de seu mal funcionamento, seja porque são os aspectos mais ostensivos, seja porque eles se prestam para ocultar a natureza iníqua do sistema e para atribuir a suas vítimas a responsabilidade pela situação.

Faz todo sentido, portanto, que a classe dominante concentre atualmente sua atenção em combater o déficit fiscal  e em levar adiante uma campanha de combate à corrupção seletiva dirigida a desestabilizar o governo, passando por cima da realidade mais profunda dos fatores estruturais que explicam a dinâmica de um sistema produtivo cada vez mais dependente do capital internacional e voltado para o enriquecimento de uma classe privilegiada de proprietários, que alimenta inter-relações ilícitas entre empresas e entre empresas e partidos políticos,  em detrimento da representatividade do Poder Político no que toca aos interesses populares.  

No primeiro caso, a intenção clara é responsabilizar o atual governo pela execução de uma política econômica supostamente ineficaz e geradora de déficit fiscal, porque expande os gastos em favor da redução das desigualdades sociais e mobiliza a força do Estado para fomentar o desenvolvimento das atividades produtivas.

No segundo caso, visando mobilizar a opinião pública contra o governo, criando a impressão de que os escândalos de corrupção que vêm sendo comprovados nas relações entre empresas privadas, empresas estatais, e partidos políticos, são uma peculiaridade dos governos do PT e de inteira responsabilidade do poder executivo.

Dessa forma, a classe dominante e seus porta-vozes no país e no exterior tentam transformar os sintomas da verdadeira crise que afeta o país em arma para desestruturar as forças políticas populares e fazer recuar os avanços até agora realizados na conformação de um novo sistema econômico mais comprometido com o fortalecimento do Estado Nacional e o melhor aproveitamento das riquezas materiais e humanas em favor de sua população.

Os verdadeiros problemas a serem atacados não são o déficit fiscal nem os casos de corrupção, mas a realização de profundas reformas que fortaleçam o Estado Nacional e a democracia participativa, para a conformação de sistemas econômico e político aptos a sustentar um processo de desenvolvimento que favoreça a maioria da população.

Mas, por agora, é indispensável buscar um entendimento entre as forças políticas do país para evitar o agravamento da situação econômica e o retrocesso no campo das políticas sociais e de reordenamento do sistema produtivo, sem o que aumentará a imprevisibilidade do futuro.

(*) Economista da escola da UNICAMP. Ex-técnico do IPEA.  

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