sexta-feira, 17 de julho de 2015

O ataque à democracia helênica e à propriedade pública da Grécia


O artigo abaixo, de Michael Hudson, professor de economia e pesquisador da University of Missouri, Kansas City, e do Levy Economics Institute of Bard College, ex-analista em Wall Street, foi escrito antes da capitulação – e, em verdade, adesão - de Tsipras diante da quadrilha intitulada “eurogrupo”.

Até por essa razão, o texto é bem elucidativo da situação grega – e, especialmente, por que foi um crime a adesão de Tsipras.

A Grécia tornou-se famosa por sua contribuição à civilização. Sua história foi pontuada pelos homens que desenvolveram o pensamento e fundaram a ciência, pelos heróis de Maratona, Termópilas e Salamina.

Não pelos traidores – os Efialtes e os Ésquinos.

Como há muito foi dito:

Em primeiro lugar, não tenhais medo da situação presente, atenienses, mesmo que possa parecer muito má. É que o pior do passado pode ser o melhor no futuro. (...) Ora, quando, atenienses, quando é que realizais aquilo que é necessário? Quando acontece algo? Até que – por Zeus! - haja alguma necessidade. E agora, que devemos pensar dos recentes acontecimentos? Pois eu penso que, para homens livres, a maior necessidade é a vergonha por causa desta situação” (Demóstenes, “Primeira Filípica”, 350 a. C.).
C.L.

MICHAEL HUDSON

O maior problema financeiro que dilacerou as economias ao longo do século passado estava mais do lado da dívida oficial, entre os governos, que da dívida do setor privado.
Eis porque a economia global de hoje enfrenta uma ruptura semelhante à de 1929-31, quando ficou evidente que o volume de dívidas oficiais intergovernamentais não podia ser reembolsado. O Tratado de Versalhes impôs reparações impossíveis à Alemanha. Os Estados Unidos impuseram exigências igualmente destrutivas aos Aliados, quanto ao pagamento de dívidas pelo fornecimento de armas utilizadas na I Guerra Mundial. [Este é o tema do meu livro Super Imperialism: The Economic Strategy of American Empire, 1972, new ed., 2002.]

É muito mais difícil cancelar parcialmente dívidas possuídas ou garantidas por governos. A dívida de empréstimos a estudantes dos EUA não pode ser anulada, mas permanece de modo a impedir os diplomados de ganharem o suficiente para terem um salário líquido (depois do serviço da dívida e a retenção na fonte da contribuição para a Segurança Social ser deduzida dos seus cheques de pagamento), de modo a casarem, constituírem família e comprarem casas para si próprios. Só os bancos obtêm salvamentos (bailed out), agora que se tornaram efetivamente os planejadores centrais da economia.

Desde a década de 1960 nações inteiras foram sujeitas à austeridade e contração econômica que torna cada vez menos possível livrarem-se da dívida. Governos são implacáveis e o FMI e BCE atuam por conta de bancos e possuidores de títulos – e estão ideologicamente capturados pelos combatentes financeiros do anti-trabalho e anti-governo.

O resultado não é a “economia de livre mercado”, nem a racionalidade econômica. Uma genuína economia de mercado reconheceria a realidade financeira e cancelaria dívidas parcialmente, de acordo com a capacidade de serem pagas.

A teoria condutora de hoje – apoiada pela teoria econômica lixo do monetarismo – é que dívidas de qualquer dimensão podem ser pagas, simplesmente pela redução dos salários e padrões de vida dos trabalhadores, mais a liquidação da propriedade pública de uma nação – sua terra, reservas de petróleo e gás, minerais e distribuição de água, estradas e sistemas de transporte, centrais elétricas e sistemas de esgotos, além de todas as formas de infraestrutura pública.

Imposta pelo monopólio das instituições financeiras intergovernamentais – o FMI, BCE, Tesouro dos EUA e assim por diante – a alavancagem financeira do credor tornou-se o novo modo de travar a guerra no século XXI. É tão devastadora quanto a guerra militar no seu efeito sobre a população: elevação das taxas de suicídio, tempos de vida mais curtos e emigração daqueles que sempre foram as principais baixas de guerra: adultos jovens. Ao invés de serem conscritos no exército para combaterem inimigos estrangeiros, eles são afastados dos seus lares para procurarem trabalho no exterior. O que costumava ser um êxodo rural da terra para as cidades desde o século XVII, é agora um “êxodo do devedor” dos países cujos governos devem somas impagavelmente altas a governos credores e aos bancos e possuidores de títulos, em cujo benefício impuseram sua política.

Ao mesmo tempo que empurra a economia do mundo para um estado de guerra internacional, a alta finança trava também uma guerra contra o trabalho – e, em última análise, contra governos e, portanto, contra a democracia.

A política do BCE neste ano tem sido brutal em relação à Grécia: “Se não reelegerem um partido ou coligação de direita, destruiremos o seu sistema bancário. Se não venderem a preço de liquidação a sua propriedade pública, tornaremos a vida ainda mais difícil para vocês”.

Não é de admirar que o ministro das Finanças grego Yanis Varoufakis tenha chamado a posição da troika na negociação de “terrorismo financeiro”. A sua ideia de “negociação” é a rendição. Eles são inflexíveis. Instituições credoras oficiais ameaçam isolar, sancionar e destruir economias inteiras, incluindo sua indústria, bem como o trabalho.

Essa é a grande diferença entre os dias de hoje e 1929-31. Naquele tempo, os principais governos do mundo, finalmente, reconheceram que as dívidas não podiam ser pagas e suspenderam as reparações alemãs e as dívidas interaliados. A situação de hoje utiliza a impossibilidade de pagar dívidas como alavanca na guerra de classe.

O objetivo político imediato desta guerra financeira na Grécia é substituir seu governo eleito (apoiado por uma notável votação no referendo de 5 de Julho de 61 a 39%) pelo controle de credores estrangeiros através de “tecnocratas”, isto é, lobbyistas de bancos, factótuns e antigos administradores da Goldman Sachs. O objetivo a longo prazo é impor uma guerra contra o trabalho – na forma de arrocho – e contra o poder dos governos de determinarem sua própria política fiscal, política financeira, política pública.

Felizmente, há uma alternativa.

Nações soberanas têm o direito de colocar o seu próprio crescimento na frente dos credores externos. Nenhuma nação deveria ser obrigada a impor depressão crônica e desemprego ou a concentrar a riqueza e rendimento para pagar dívidas.

Toda nação tem direito ao critério chave da nacionalidade: o direito de emitir sua própria moeda, cobrar impostos e escrever suas leis, incluindo aquelas que governam relações entre credores e devedores, especialmente os termos de bancarrota e anulação de dívida.

A lógica econômica foi reconhecida no fim da década de 20: quando dívidas atingem o nível em que perturbam o equilíbrio econômico básico e desordenam a sociedade, elas deveriam ser anuladas. Uma outra forma de dizer isto é que o volume de dívida – e os custos dos seus encargos – deve ser trazido a uma razoável capacidade para pagar.

Rejeitando a posição do “hard money” (realmente um “hard credor”) de economistas anti-alemães como Bertil Ohlin e Jacques Rueff, Keynes argumentou que os credores tinham a obrigação de explicar à Alemanha, simplesmente, como teriam possibilidade de pagar suas reparações. Ele queria, naquele tempo, que a França, Grã-Bretanha e outros receptores de reparações especificassem exatamente que exportações alemãs deveriam concordar em comprar.

Mas, hoje, os credores definem a capacidade de pagar de uma nação, não em termos de como ela pode ganhar o dinheiro para pagar, mas, ao invés, que ativos da propriedade pública ela deve liquidar, naquilo que é um processo de bancarrota nacional. Países devedores devem deixar sua infraestrutura pública ser vendida a extratores de renda, para criar uma economia de pedágios neofeudal.
Sob o direito internacional, nenhuma nação está legalmente obrigada a fazer isto. E sob a definição moral de nacionalidade, elas não deveriam ser forçadas a assim fazer. O seu direito a resistir é o que as faz soberanas, afinal de contas.

FÓRUM

O que é necessário para colocar este princípio básico em prática é a criação de um novo fórum internacional para decidir quanto da dívida pode razoavelmente ser pago – e quanto deveria ser anulado. Em 1929 o Plano Young (que substituiu o Plano Dawes para tratar mais racionalmente das reparações alemãs) apelou à criação de uma tal instituição – o que se tornou o Bank for International Settlements (BIS), em 1931, para travar a destruição econômica da Alemanha, fazendo com que suas reparações ficassem em consonância com a sua capacidade para pagar.

O BIS não desempenha mais tal papel, porque se tornou o principal local de reunião para os bancos centrais do mundo e, como tal, adotou a linha rígida de que “todas as dívidas devem ser pagas”, a que originalmente estava destinado a se opor.

Igualmente, o FMI não pode desempenhar este papel. Ele é irremediavelmente político. Apesar da sua equipe técnica determinar, em 2010-11, que as dívidas externas da Grécia não podiam ser pagas, e, portanto, precisavam ser anuladas, seus chefes – primeiro Dominique Strauss-Kahn e, a seguir, Lagarde – atuaram, em flagrante conflito de interesse, em apoio aos banqueiros franceses, que pediam o pagamento pleno, e aos pedidos do presidente Obama e do lobbyista da Wall Street Tim Geithner, que insistiam em nenhum cancelamento parcial.

Aquele foi o preço para o apoio da banca francesa à pretensão de Strauss-Kahn de candidatar-se à presidência da França, e, recentemente, ao apoio a Lagarde. Dado o poder de veto dos EUA, por Wall Street, e à insistência dos ideólogos anti-trabalho da direita (habitualmente franceses) em serem nomeados chefes do FMI, é necessária uma nova organização, representando a espécie de lógica econômica delineada nos anos 1920 por Keynes, Harold Moulton e outros.

FRAUDE

O setor privado desde há muito tem leis que impedem prestamistas de emprestarem mais fundos do que o devedor possa razoavelmente reembolsar. Se um prestamista avança, digamos, US$ 10 mil como um empréstimo hipotecário contra uma casa que valha mais (digamos, US$ 100 mil), e então insiste em que o devedor pague ou perca a sua casa, os tribunais podem assumir que o empréstimo foi efetuado com essa intenção - e anular a dívida.

Da mesma forma, se uma companhia é atacada por prestatários, carregando-a com títulos-lixo de altos juros, e toma o seu fundo de pensões para pagar suas dívidas, a companhia sob ataque pode processar sob a lei das transmissões fraudulentas de bens.

Este estratagema empréstimo-arresto é o jogo que a troika tem feito com a Grécia. Eles emprestam ao seu governo dinheiro que os economistas do FMI explicaram bastante claramente em 2010-11 (e reafirmaram este ano pouco antes do referendo grego) que não podia ser pago.

Mas, então, veio o BCE e disse: “Liquidem vossa infraestrutura, vendam seus portos, seus direitos ao gás no Egeu e ilhas inteiras, a fim de obter o dinheiro para pagar o que o FMI e o BCE tem pago a franceses, alemães e outros detentores de títulos em seu nome” (enquanto salvavam bancos de investimento e hedge funds dos EUA de perderem suas apostas em quais dívidas gregas seriam realmente pagas).

A aplicação deste princípio requer que um tribunal internacional determine em que ponto aquele serviço de dívida se torna intrusivo e, consequentemente, cancele as dívidas parcialmente.

TESOURARIAS

Os bancos centrais de hoje só emprestam dinheiro a bancos, com o objetivo de carregar economias com dívida. A exigência irracional dos banqueiros de impedir uma opção pública de criação de crédito nos seus próprios teclados de computador (do mesmo modo como aqueles bancos criam empréstimos e depósitos), destina-se simplesmente a criar um monopólio privado para extrair renda econômica na forma de juros, taxas e finalmente embargos de credores inadimplentes – tudo garantido pelos “contribuintes”.

O Banco Central Europeu não é adequado para este dever. Antes de mais nada, ele baseia-se na ideologia de que a criação de moeda pública é inflacionária. A realidade é que a criação de moeda pelo banco central apenas financiou a maior inflação da história moderna – a inflação de preços de ativos no mercado imobiliário por hipotecas-lixo, inflação de preços de ações por emissões de títulos-lixo e o Afrouxamento Quantitativo (Quantitative Easing) do banco central, para criar a maior e mais rápida corrida no mercado de títulos da história.

A experiência pós 1980 com bancos centrais removeu qualquer lógica moral ou econômica do seu comportamento, quando lobbyistas de bancos comerciais, defensores de privilégios especiais, desregulamentadores do crime financeiro e extremistas de direita, bloqueadores de uma opção pública na banca, a fim de fazer com que serviços básicos estejam de acordo com seus custos reais.

Em suma, se sistemas de bancos comerciais, em praticamente todos os países, tornaram-nos desindustrializados e perversos, seus possibilitadores foram bancos centrais.

O remédio é substituir estes bancos centrais com o que os antecedeu: Tesourarias nacionais, cuja função adequada é monetizar as despesas do governo dentro da economia. O princípio básico de funcionamento é que qualquer necessidade monetária e de crédito da economia deveria ser cumprida pelo gasto público e monetização, não por bancos centrais que criam crédito portador de juros para financiar a transferência de ativos (ex.: hipotecas imobiliárias, buyouts e raids corporativos, arbitragem e jogos de casino capitalistas).

RESUMO

Toda nação tem o direito de se defender contra um ataque – tanto um ataque financeiro como um ataque militar aberto. Isso faz parte do princípio da auto-determinação.

A Grécia, Espanha, Portugal, Itália e outros países devedores têm estado sob o mesmo modo de ataque, como o do FMI e sua doutrina de arrocho, que levaram a América Latina à bancarrota na década de 1970. O direito internacional precisa ser atualizado para reconhecer que a finança tornou-se o modo de guerra dos dias modernos. Seus objetivos são os mesmos: aquisição de terra, matérias-primas e monopólios.

O acordo de Londres, de 1953, para perdoar dívidas alemãs

Um subproduto desta guerra foi tornar a rede financeira de hoje tão disfuncional que as nações agora precisam de um recomeço financeiro. Aquele que teve mais êxito em tempos modernos foi o Milagre Econômico alemão – a Reforma Monetária dos Aliados após a II Guerra Mundial. Todas as dívidas internas alemãs foram anuladas, exceto dívidas salariais de empregados. Posteriormente, em 1953, suas dívidas internacionais foram canceladas parcialmente. A lógica que levou a estes atos precisa ser reaplicada hoje.

Em relação especificamente à Grécia, líderes do Syriza disseram que querem salvar a Europa. Antes de mais nada, da irracionalidade econômica destrutiva da zona do euro, ao não ter um banco central real. Este defeito foi construído deliberadamente na zona do euro, a fim de forçar um monopólio de bancos comerciais e detentores de títulos suficientemente poderosos para ganhar o controle de governos, rejeitando a política e os referendos democráticos.

As regras da zona do euro – os tratados de Maastricht e Lisboa – destinam-se a impedir os governos de incidirem em déficits orçamentários. O novo objetivo é apenas resgatar detentores de títulos e bancos de maus empréstimos e mesmo de empréstimos fraudulentos, salvando-os a expensas públicas. As economias são obrigadas a voltarem-se para empréstimos dos bancos comerciais a fim de obter o dinheiro que precisam para crescer. Este princípio precisa ser rejeitado, pois viola um direito soberano básico dos governos e da democracia econômica.

Uma vez que uma economia está financeiramente defeituosa por (1) não ter um banco central para financiar a despesa governamental, e (2) pela limitação dos déficits orçamentários do governo a apenas 3% do PIB, a economia é obrigada a se contrair. Uma economia em contração significará menos receitas fiscais e, portanto, déficits no orçamento mais profundos - e elevação da dívida governamental.

O supremo assassinato é a exigência do BCE, FMI e CE de que governos paguem suas dívidas através da privatização da infraestrutura pública, recursos naturais, terra e outros ativos da propriedade pública. Para agravar esta exigência, a troika impediu a Grécia de vender esses ativos pela oferta mais alta, se fosse a Gazprom ou outra companhia russa. A política financeira tornou-se, portanto, militarizada, como parte da política de Nova Guerra-fria da OTAN. Economias devedoras estão destinadas a vender a euro-cleptocratas – financiados pelos bancos, de modo que encargos de juros do acordo absorvam todos os lucros, deixando os governos sem muita receita fiscal.

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