domingo, 19 de julho de 2015

Não sou branco, sou lusodescendente


POR FREI BETTO 27/06/2015
A 14 de maio deste ano vi, na Globonews, a entrevista concedida por Alberto da Costa e Silva, nosso maior especialista em África, a Miriam Leitão. Notei esta disparidade: o entrevistado utilizava sempre a palavra “negros”, enquanto a jornalista dizia “afrodescendentes” ao se referir à parcela da população brasileira derivada de africanos, como é o meu caso (embora não aparenta).
Sempre impliquei com a expressão “afrodescendente” ou “afro-brasileiro”. Simples: nunca ninguém me chamou de “eurodescendente” ou “iberodescendente” ou “lusodescendente”.
Eufemismos servem, em geral, para tentar encobrir preconceitos. Lembro-me da tia que se referia à cozinheira como “aquela moça escurinha”...
Caso similar é o vocábulo “velhos”, para se referir a idosos. Sou um deles. E abomino essa mentira eufemística de “melhor idade” ou “terceira idade”. A usar eufemismo, prefiro ser chamado de “seminovo”, como os carros velhos expostos em revendedoras de veículos. E me sinto na turma da “eterna idade”, já que cronologicamente estou mais próximo dela...
Não há palavras neutras, há quem ignore o significado e a carga simbólica que elas contêm.
Sonho com o dia em que ninguém será identificado pela cor da pele. 
Pois a biologia já provou que não existem raças
Afrodescendente é expressão norte-americana criada para deixar claro que os negros dos EUA não são naturais do país. São imigrantes e filhos de imigrantes, gente “de fora”, lá da longínqua e atrasada África. E ali são tolerados, desde que reconheçam que não são iguais aos ianques, são seres inferiores, sub-raça. Diga-se de passagem, que os EUA batem o recorde mundial de prisioneiros: 2,3 milhões, dos quais 1,5 milhão são negros.
Baseado em Galeano (que se inspirou em Senghor), registro esta parábola: o professor chamou o aluno negro de “moço de cor”. Este não se fez de rogado: “Professor, de cor são o senhor e meus colegas. Nasceram rosados, ficaram brancos, adquirem pele vermelha quando se expõem na praia; tostada, quando se queimam ao sol; amarela, quando têm hepatite; e roxa, quando falecem. E eu é que sou de cor?”.
O preconceito avança vocabulário adentro: “denegrir” significa “enegrecer”, rebaixar uma pessoa à condição de negro. Isso não quer dizer que eu defenda o “politicamente correto”. Quando não se vê horizonte na conjuntura, como hoje no Brasil, admito que a situação “está preta”, ou seja, no escuro nada se enxerga. E considero patrimônio nacional a canção de Rubens Soares e David Nasser: “Nega do cabelo duro, qual é o pente que te penteia?”.
Pena que os negros, ao menos aqui no Brasil, não deem o troco devido aos brancos. Jean Genet, em uma de suas peças teatrais, faz o ator negro cessar os movimentos no palco, encarar a plateia francesa e exclamar: “Que cheiro horrível! Cheiro azedo de branco!”.
No Brasil, a discriminação racial se disfarça pelo fato de a maioria negra ainda ser pobre. Sonho com o dia em que ninguém será identificado pela cor da pele. Pois a biologia já provou que não existem raças. Existem apenas diferenças de coloração epidérmica. Somos todos seres humanos intrinsecamente dotados de dignidade e sacralidade.
Frei Betto é escritor, autor de “A Arte de Semear Estrelas” (Rocco), entre outros livros. | www.freibetto.org | Twitter: @freibetto

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