quarta-feira, 3 de dezembro de 2014

AS REVOLUÇÕES NÃO TERMINAM NUNCA

Poeta e crítico Paulo Hecker Filho deixou Sartre comendo poeira: 

“A lição de Stalin já mudou o mundo para melhor” 
A obra poética de Paulo Hecker Filho já foi abordada aqui pelo também poeta gaúcho Sidnei Schneider. No artigo de hoje, Sidnei nos apresenta o “pensamento independente e livre das pressões midiáticas” de Hecker sobre o líder da construção do socialismo na URSS. Segundo ele, “sem Stalin, permaneceríamos na barbárie social do século XIX” 
SIDNEI SCHNEIDER 
O poeta, crítico e dramaturgo gaúcho Paulo Hecker Filho (1926-2005), autor de dezenas de livros e colaborador dos jornais Estado de São Paulo, Zero Hora, Correio do Povo, nasceu para o mundo intelectual no pós-guerra, e como era comum à época, interessou-se pelo existencialismo, particularmente o de Jean Paul Sartre. Percebeu, porém, com o decorrer do tempo, que faltava algo de compromisso com o ser social nessa corrente, e festejou a posterior aproximação do filósofo francês das lutas populares, da independência das nações e do socialismo soviético. Como é sabido, Sartre deu para trás, pressionado pela guerra ideológica promovida pelos asseclas do imperialismo, e renegou o que vinha defendendo, inclusive a liderança de José Stalin por ele festejada. Hecker, dono de um pensamento independente e livre das pressões midiáticas e editoriais, após muito estudo e determinação, continuou a defesa de Stalin e do socialismo, especialmente durante e depois da debacle da URSS, quando o imperialismo voraz e sua mídia se apoiavam em Francis Fukuiama para sustentar o fim da história e de qualquer esperança de um mundo mais justo. 
Hecker não se impressionava fácil. Se, diante da ameaça atômica norte-americana, Kruschov não sustentou a luta e, para corroer a sociedade soviética por dentro com uma ideologia que não lhe correspondia, julgou por bem fazer coro com a direita mais sovina e difamar o seu antecessor, iniciando a destruição do socialismo – Hecker, por sua vez, via a figura decisiva de Stalin para o progresso humano. Quando os seguidores e sucessores de Kruschov, após 40 anos de ignomínias e crescentes aceitações da ideologia, da política e da economia do inimigo, conseguiram por fim abalar a fortaleza social erigida sob a liderança de Lenin e Stalin - o nosso poeta não titubeou, percebendo que a sociedade humana atual continuava impregnada das suas conquistas e iria ainda mais longe. Para um pensador não apoiado na discussão e no estudo constante de um coletivo organizado e partidário, convenhamos, a convicção que alcançou é surpreendente, parece quase impossível. É claro que sempre houve uma luta ideológica em torno disso, e o fato dela ter sido sustentada aqui no Brasil por certo iluminou as ideias que balançavam no trapézio do cérebro desse guerreiro. Na vida e na história, os seres humanos sempre a nos surpreender com suas capacidades.
Para começar, reproduzamos trechos do texto Graças a Stalin, de 12.11.1990 (portanto, com a URSS sob o governo fedífrago de Gorbachov), que Hecker distribuía, como se verifica em uma carta ao amigo Darcy Ribeiro, entre a intelectualidade:
“Num dos seus agradáveis papos públicos, (o escritor) Moacyr Scliar teve humor: ‘Está aí por que os russos nunca dominarão o mundo: se para fazer um simples chá, usam algo tão complicado como um samovar!...’
“Rimos, mas o fato é que já dominaram. E felizmente. Lenin e seu alter ego Stalin transformaram a nossa atitude básica, a relativa aos outros, que são o que mais importa a cada um. E não só diretamente no mundo socialista, em termos de população já regulando com a do capitalista, como nesse. As conquistas igualitárias que deram novo rosto ao século – direitos do trabalho, anticolonialismo, antirracismo, enfim quase tudo o que há de concreto sob a palavra democracia, que se tornou um dogma da época só recusado por extravagantes, vem da revolução russa, vem de Stalin, já que ele, mais que ninguém, foi quem preservou e desenvolveu a Rússia, tornando-a a potência que venceu quase sozinha a Alemanha nazista e freou a expansão do império americano, com sua inumana produção pela produção. (Hoje nem isso, acrescentaríamos).
“Graças a Stalin se generalizou a consciência de que o povo existe e deve ter o que comer e onde morar, todos são gente. Sem ele, permaneceríamos na barbárie social do século XIX.
“Se nela ainda em parte estamos, ao menos podemos vê-la, o que é o começo de afastá-la, já sem as ideologias cataratas (...). A política agora leva o povo em conta; mesmo insinceramente, tem de levar ou não anda. Oferece trabalho e desprendimento pela maioria e não raro cumpre. Os aproveitadores e seus súditos, sempre mais realistas que o rei, tentam desmoralizar as boas intenções, ganhando tempo para ir tirando suas vantagens; consistentes ou irrisórias importa menos, pois, ainda que com ironia, arcam com o que é hoje o grande, senão o único pecado, não ser solidário.
“Recorde-se que para tomar e manter o poder, Lenin organizou o partido como uma milícia. Preocupava-se menos com novas adesões do que conservar a unidade disciplinada, pronta a agir como um homem, em suma, um Lenin multiplicado. A mesma tática preside a longa administração de Stalin e, dadas as pressões externas e internas, não se concebe outra que pudesse ter sido tão vitoriosa. A nação foi vista como uma família e assim tratada. Não satisfeito em administrar com sensatez e quase ubiquidade, dirigir, aliás, brilhantemente, a guerra e os acordos posteriores, Stalin passou a vida a escrever, a lecionar com clara didática a nova ordem aos russos e ao mundo. Aos poucos, construiu uma grande nação, na cidade e no campo, acabou com o subemprego, a submoradia, o ócio que levava ao vício e à violência, o frio, a fome. (...)
“Despontam frívolos coveiros para o comunismo e ele felizmente já está vivendo dentro da maioria. Vejam o caso atual brasileiro. Nada menos comunista em palavra e ideia mas, por não esquecer a nação, tomam-se medidas que os eternos parasitas apodam de comunistas. Que sejam. Praticamente todos somos um pouco comunistas. Aprendemos com Stalin.
“O ideal seria que a organização democrática se fizesse sem fraturas, pela consciência de sua necessidade; Marx sonhou com o fim do Estado. Possível ou não, até lá devagar com o andor. A lição de Stalin, de que o bem geral vem antes dos bens particulares, não terminou de ter vez e haverá recalcitrantes, nostálgicos do passado e da barbárie. Mas a verdade é que já mudou o mundo, para melhor.”






Num pequeno trecho desse texto, Hecker avalia que o debate estaria “ampliado até a Perestroika”, sem ainda desvendar o seu conteúdo. Logo a seguir, porém, em 1991, quando Yeltsin assume e a mídia dócil pretende comemorar o fim do socialismo, ele escreve Olhe a armadilha, se ainda não caiu nela: “Quando as metas se congelam, é que diminuiu nosso diálogo com a vida. O sadio é mudarem por acréscimo, e tanto para nós individualmente, como para a família, o grupo, a cidade, o mundo. Apesar da insistência da mídia, o comunismo não acabou. Nem mesmo a democracia (...). Pode-se dizer que a Revolução Francesa não terminou, voltará a ocorrer noutras circunstâncias, nem a russa, a cubana, a chinesa, e que sempre ouviremos ecos do Grito do Ipiranga. Nem se encerra a obra e a sucessão dos grandes libertadores”. E aqui Hecker cita Descartes, Hume, Voltaire, Kant, Hegel, Marx, Freud, Lenin, Stalin, Mao, Fidel, entre outros. E denuncia o imperialismo: “Quatro quintos do mundo a se matarem para que um centésimo se encha de tanto dinheiro que não pode perder um minuto sem tratar de aumentá-lo, sob pena de perder dinheiro, o maior pecado na ética capitalista. (...) O socialismo, capitaneado por Stalin, transformou-a (a antiga Rússia) em vinte anos na segunda potência do mundo. (...) Olhe um pobre, olhe dois, olhe mil, e me diga se existe algo mais urgente do que oferecer uma possibilidade de vida aos que não têm nada. E isso só o socialismo mostrou que pode. (...) Agora a mídia a cloroformiza (a consciência política) com descaro. Vamos de pós-moderno, querem uns, o que acaba se reduzindo a pós-humano (...). Seguindo a ladainha diária da mídia, não é só o socialismo, parece até que o mundo acabou, a cultura ocidental, e não nos resta mais a fazer do que comprar o que ela anuncia e calar a boca”. Diz que não se acreditaria que a agiotagem internacional “tentasse de novo escravizar o mundo” e que “se a oposição vacila, escravizam mesmo: têm força e, diante dela, só outra maior”.
A 07.09.1992, escreve O simpósio (banquete em grego), sobre um debate acontecido em Porto Alegre, que contou com José Saramago, o citado Francis Fukuiama, e vários outros, entre os quais o psicanalista francês Cornelius Castoriadis, com o qual Hecker concorda só para melhor contestá-lo: “Que Lenin é que tem a idéia do partido pensando como uma cabeça, a de Lenin naturalmente, e é ele que institui a política realista de que Stalin é tão acusado, de modo que a Revolução Russa não tinha outro caminho a seguir senão o que seguiu. De acordo. Só que ele odeia Lenin e Stalin e eu os admiro, sem conceber que se possa separá-los. A Revolução de que são os principais autores, no mínimo despertou e manteve desperta a consciência social do mundo inteiro e é ainda no rastro de suas promessas que o melhor do século existe no plano coletivo.” A seguir, defende a civilização contra certo insulamento nuclear defendido pelo outro. Esse lúcido e corajoso bate-pronto de Paulo Hecker, ao inicialmente citar Castoriadis, talvez exija alguns esclarecimentos ao leitor. A relação do líder com o coletivo partidário, e por extensão com o povo, é uma relação que se realimenta mutuamente, ampliando-se em força e sabedoria. Assim, o partido bolchevique, com sua unidade na açãodestacada por Hecker, pronto a agir como um só homem, pensa mais e melhor do que se apenas contasse com uma cabeça, ainda que essa fosse “a de Lenin, naturalmente”, e para tal realiza os conhecidos debates e reuniões, nas quais o líder e cada um exercem suas prerrogativas. É óbvio que a administração de Stalin, quando a atuação e o discernimento do líder foram exigidos num grau nunca visto, também se apoiou dessa forma no partido e no povo, e só assim pôde vencer os obstáculos e liquidar o horror nazi-fascista que ameaçava a humanidade. O julgamento e a condenação, antes da Segunda Guerra, dos traidores, sabotadores e assassinos mancomunados com o nazismo garantiu essa vitória. Não surpreende que os escribas do império e a mídia vende-pátria seguidamente queiram ver neles o verdadeiro partido e um abafamento da discussão partidária. Revelam, apenas, ter algo em comum com tais traficâncias.
Quanto a Fukuiama, que considera, nas palavras de Hecker, que “já se chegou ao melhor modo de viver, que a história terminou na sociedade norte-americana”, embora não desconheça “os setores de miséria dessa sociedade, inclusive os aponta mas considerando-os superáveis ou perdoáveis” - o poeta é claro: “Eu diria que são assustadores, especialmente no Terceiro Mundo, na dependência da economia americana.” E denuncia, ainda, que “o dinheiro em excesso, e é o que o dinheiro quer, sempre mais, desumaniza os que o possuem e suprime os que não o possuem.” Comenta, também, um livro do alemão Robert Kurtz que “analisa a derrocada dos regimes do Leste e da URSS como mais uma crise do capital que do socialismo”.
Vejamos uma resenha de 28.12.1994, intitulada Um livro, um homem, para as memórias do romancista Ivan Pedro de Martins, integrante da Aliança Nacional Libertadora dos anos 30, de nome A flecha e o alvo. Hecker o trata com o carinho da amizade, sem, no entanto, concordar com o que lhe parece mero antistalinismo aurido nos anos de moradia do autor no adverso contexto de Londres. Defende a necessidade das ações firmes de Stalin contra a quinta-coluna, na defesa da sua pátria e da humanidade, estando “o país sob constante ameaça e por fim sendo invadido”: “Mas com Stalin dirigindo a paz e a guerra, (a URSS) soube vencer quando ninguém conseguia. De qualquer forma, ele morreu há mais de quarenta anos, em 53, e já em 56 houve a denúncia contra os seus arrochos, saiu do primeiro plano. Se a URSS chegou ao ponto de desastre, é evidente que a culpa é dos que vieram depois. Basta ler a biografia de um antistalinista como Deutscher, para ver que não se tratava de caprichos tirânicos, mas a ação de um estadista que não brincava em serviço, não podia brincar, não o deixavam”.
Numa entrevista a Luciano Dutra, a 30.07.1992, intitulada e subintitulada Para ser poeta ou prosador, você tem de gastar a vida nisso, e sem garantias, a primeira pergunta é: “O senhor é mesmo stalinista ou isso também faz parte da sua poética?” Hecker responde: “Tudo em mim faz parte da minha poética ou é desvio. Mas não sou ista nada”, revelando que tem “compromisso com a verdade. O que é a verdade? Aquilo de que se tem na hora a certeza possível.
“Admiro Stalin. É difícil, quando se busca conhecer, não admirar obra tão portentosa, guiada pelo bem dos homens. Se teve aspectos duros, podia não ter tido nas circunstâncias de guerra quase permanente em que se processou? De início, como revolucionário clandestino e perseguido; logo, saindo da primeira Grande Guerra, como revolucionário vitorioso; depois, como chefe, a enfrentar a guerra civil, com adversários socorridos pelas grandes nações, e a arrostar com a revolta sobretudo pela coletivização dos campos; a seguir, o clima de pré-guerra da Segunda Mundial, e essa, em que é o grande vitorioso como organizador da sociedade civil e da resistência bélica; após a guerra, como diplomata de todas as conquistas, enfrentando depois os riscos da guerra fria. E todo o tempo lendo e escrevendo com a modéstia deliberada de explicar as coisas para todos, que inclusive esperavam e acatavam a sua palavra. Já é uma vida.
“Morreu há quarenta anos. Não admira que continue sendo um ponto de referência, mas (...) naturalmente não é o responsável pelo que se passa na URSS, agora CEI. Essa confusão é há muito alimentada pelos inimigos da Revolução de Outubro, que têm justamente o maior poder da terra, o capital. No entanto a revolução continua a grande promessa do século de redenção terrena e foram Lenin e Stalin que a fizeram antes de quaisquer outros.”
Há mais, e alguma coisa já publicamos quando da morte do autor, inclusive aqui. Ao leitor que não conhece Paulo Hecker Filho, pode lhe passar que seja um historiador ou quadro partidário, mas Hecker, na sua singularidade, passou a maior parte da vida escrevendo poesias e fazendo crítica literária, e como tal é reconhecido. De minha parte, como poeta, eu talvez preferisse falar da sua poesia - o que, aliás, já fiz outras vezes. Provavelmente, ele também preferisse o assunto. Mas há coisas na face da terra e na história humana que não podem ser caladas. Os milhares de arquivos, anotações e cartas do poeta estão no seu acervo literário, sob a responsabilidade da PUC-RS. Informações e textos aqui reproduzidos, no livro de sua autoria Saudades de Voltaire, Porto Alegre, Editora Sulina, 1998, agora distribuído, os exemplares restantes, pela Editora Alcance. Os 40 mil livros que possuía, segundo sua vontade, foram herdados por um amigo escritor. A sabedoria investigativa e a poesia da sua obra podem orgulhar, e muito, os seus familiares e amigos.
Parece até, como se pode deduzir, que na hora de sua maior lucidez, Sartre deu sua contribuiçãozinha, afinal. É sabido, também, que Stalin escreveu e publicou poemas quando jovem, e continuou a ler poesia durante toda a vida, tornando-se inclusive especialista em certos autores. Paulo Hecker, sem dúvida, escrevia de poeta para poeta.
http://www.horadopovo.com.br/

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