sexta-feira, 13 de dezembro de 2013

Sobre as causas do insucesso econômico do governo Dilma


O governo Dilma, do ponto de vista econômico, preferiu ser uma continuação mais do governo Fernando Henrique Cardoso que do governo Lula. Daí, também, certos aspectos políticos assemelhados, especialmente a crença de que o marketing é um substituto aceitável para a verdade, e a obtenção do mesmo resultado: a condução do país a uma situação bastante difícil – digamos assim, não somente para evitar exageros, mas também porque o nosso objetivo não é apavorar as pessoas, e, sim, contribuir para a superação das dificuldades ao fornecer algum material para o debate
CARLOS LOPES
Numa conferência, em agosto de 2012, o economista norte-americano Joseph Stieglitz – entre outras coisas, ainda que isso tenha importância apenas relativa, Prêmio Nobel de Economia - apontou "os bancos e setores financeiros especulativos" como responsáveis por criar uma "paranoia da inflação" com o intuito de provocar uma política de arrocho na economia dos países.
Essa conferência foi proferida na Faculdade de Ciências Econômicas da Universidade de Buenos Aires. Na entrevista coletiva que a sucedeu, Stieglitz observou que "a inflação não é um assunto em si mesmo". A questão que merece preocupação "consiste nas consequências e do que acontece com o emprego, o crescimento, a distribuição de renda".
"Quando nos dizem", declarou o economista, "que a inflação é o imposto mais cruel, suspeitemos, pois só quando a inflação é muito alta pode afetar o crescimento de um país. A preocupação principal dos mercados financeiros nunca foi com os mais pobres" (cit. in Alfredo Zaiat, "Economía a Contra Mano", ed. Planeta, Buenos Aires, 2012, pág. 173).
ILIQUIDEZ
De certa forma, poder-se-ia pensar, essa "paranoia da inflação" - ou a covardia frente a essa criação especulativa – define o problema do governo Dilma.
Em artigo recente, sublinha Amir Khair - que não pode ser acusado de anti-petista - a absurdamente escassa liquidez (ou seja, falta de dinheiro em papel-moeda ou moeda metálica) da economia brasileira, no mesmo momento em que, já há cinco anos, os países centrais, sobretudo os EUA, expandem aos trilhões a liquidez das suas economias.
"Essa inundação de moedas", diz Khair, "desvalorizou-as em relação às moedas dos países que não usaram a mesma estratégia. Isso distorceu a concorrência internacional entre as empresas, prejudicando aquelas sediadas em países que não alteraram suas bases monetárias. Urge corrigir essa distorção e só vejo como forma eficaz nesse embate o uso da mesma arma, ou seja, a elevação da base monetária.
"Nesse sentido, o governo, ao invés de continuar a emitir títulos de dívida para cobrir o déficit fiscal, que oneram juros, deveria emitir moeda até atingir nível condizente com o que operam economias de países emergentes, que têm inflação semelhante à nossa. Trata-se de ampliar substancialmente a liquidez da economia.
Khair argumenta, muito convincentemente, com os dados do M1 (o "agregado monetário" formado pelo dinheiro em circulação + dinheiro depositado em contas-correntes). No Brasil, o M1 "oscila entre 5% a 7% do PIB. É muito baixo em comparação com os demais países. O último dado disponível é de 2010: Brasil 6,8%, Argentina e México 12%, Índia 19%, África do Sul 31% e China 60%. Na zona do euro o M1 estava em 2010 em 50% e no Japão 104%".
Segundo o autor, "se o M1 fosse gradualmente elevado pela emissão monetária até o nível de 12%[do PIB], seriam economizados anualmente em juros R$ 23 bilhões por ano. A dívida do setor público cairia R$ 250 bilhões, levando-a abaixo de 30% do PIB, e o câmbio poderia caminhar rumo a R$ 3,00 por dólar, contribuindo para ampliar a competitividade das empresas e indo na direção do equilíbrio nas contas externas".
Obviamente, tal alternativa deixa horrorizadas as atuais "autoridades econômicas" - e mais acima – todas com a mentalidade capturada pelo blá-blá-blá rentista-neoliberal sobre a inflação. Uma conversa, aliás, de um tédio infinito, pois não passa da repetição perpétua de grosseiros lugares-comuns, sem o menor espaço para algo que não seja a submissão dos juros altos e do arrocho geral sobre o país.
É interessante como Khair trata a questão da inflação:
"... a desvalorização cambial [consequente ao aumento de liquidez] num primeiro momento encarece os produtos importados, mas quem exporta procura estabelecer o preço levando em conta os preços praticados no mercado de destino. Com a desvalorização do real o preço do produto importado também pode ser reduzido dada a super oferta internacional com preços sendo derrubados. Assim, no momento seguinte os preços podem se acomodar não gerando inflação. A prova disso é que em 2011 o câmbio em valores de junho deste ano estava em R$ 1,83/US$ e a inflação bateu em 6,5%. Atualmente gira no entorno de R$ 2,20/US$, com desvalorização real (excluída a inflação) de 20% e a previsão da inflação é de 5,8%".
Explicitemos que essa incrível "falta de liquidez", em que a economia do país é mantida, serve ao propósito de manter os juros nas alturas – e, por consequência, os ganhos dos bancos e outros especuladores.
Por isso, já é possível perceber a relação entre a derrubada do crescimento e a locupletação do setor financeiro – que, hoje, mesmo dentro do país é sobretudo externo – com os juros, a dívida pública e os recursos de toda a sociedade.
Mas é preciso desenvolver um pouco mais a questão para torná-la totalmente nítida – e, como se trata de uma luta, pois a política econômica não é um fenômeno da natureza, caracterizar diante do que se rendeu o atual governo.
POTENCIAL
As atuais pressões (da mídia, dos porta-vozes dos bancos, especialmente dos órgãos oficiais e suboficiais dos monopólios financeiros externos) para que o governo aumente o desvio, para os juros, das receitas de impostos, contribuições e previdência social – a gritaria para aumentar o "superávit primário" e as transferências de dinheiro aos bancos - somente significam que a pior forma de tratar esses chacais é cedendo a eles. Sempre vão querer mais. Sobretudo quando, devido às concessões anteriores, o país está atolado na estagnação – portanto, na visão dos predadores financeiros, diminui a perspectiva de que haja mais carne para devorar no futuro. Logo, é preciso devorar o máximo antes que a festa acabe.
Certamente, não faltam "autoridades" (não estamos, aqui, nos referindo às governamentais) e "técnicos" que garantem que não podemos viver sem doar parte do dinheiro que pagamos - em impostos e contribuições - aos bancos e fundos externos. Essa malta de pseudo-sapientes econômicos parece ter substituído, definitivamente, o pensamento por um reflexo condicionado. Seus amestradores conseguiram – mais do que Pavlov conseguiu com seus cães – um tremendo sucesso, usando não somente os estímulos negativos, as ameaças de frustração se saírem da linha, mas também os "positivos" – ou seja, dinheiro.
Recentemente, o economista-chefe de uma das principais "consultorias" do país, a LCA Consultores (Luciano Coutinho e Associados Consultores) publicou um sintomático artigo, comentando a proposta de uma "banda" para o "superávit primário", bobagem vulgarizada pela ministra Gleisi Hoffmann. A grande preocupação desse consultor com a proposta é: "quem garante que o resultado primário não ficará ad eternum no piso dessa banda (…)?".
Trata-se de uma grande preocupação com os ganhos dos bancos, fundos e outros especuladores à custa do dinheiro público. Por consequência, o consultor levanta uma "sugestão": "que esses intervalos para a oscilação do resultado primário estivessem associados a faixas para a variação do PIB, de modo a criar um mecanismo de ajuste automático da política fiscal com relação ao ciclo econômico".
Traduzindo: que exista "ad eternum" (talvez incluído na Constituição, quem sabe, ou na Bíblia) um freio para impedir o país de crescer. O consultor cita "um relatório recente do FMI sobre a economia brasileira" que, diz ele, conclui que "um superávit primário no intervalo de 2% a 3,1% do PIB assegura, em 75% a 90% dos casos, um recuo da dívida pública bruta brasileira ao longo dos próximos 15 anos. Um superavit primário de 1% reduz essa probabilidade para 50%".
Se a preocupação do FMI, ou dos consultores que repetem o FMI, fosse com a dívida pública, recomendariam uma queda nos juros, pois são eles os responsáveis pelo aumento da "dívida bruta". No entanto, pelo contrário, os conselhos desses cavalheiros e damas são sempre de que os juros sejam mantidos nas alturas – em geral que sejam aumentados – e, coerentemente, que o desvio orçamentário para os juros (o superávit primário) seja mantido e aumentado, da mesma forma.
O problema deles, no entanto, é outro, aliás, oposto: que o crescimento do país não impeça o desvio de recursos nacionais (públicos, mas também privados) para a especulação. Por isso, o país não pode crescer além da camisa de força imposta pela especulação – e daí os sacrossantos limites do seu malfadado "PIB potencial", além do qual, temem eles, os ganhos dos especuladores poderiam ser prejudicados. Não que diminuíssem automaticamente, mas o objetivo deles é garantir que esses ganhos aumentem sempre.
Como seria de esperar, é a esse ponto que chega o profissional da LCA Consultores: "... isso traz outro desafio: definir o que é um crescimento forte ou fraco do PIB". E a resposta é: "... estimativas apontam que o crescimento potencial brasileiro nos próximos 15 anos é de cerca de 3,3% ao ano".
A média de crescimento dos países "emergentes e em desenvolvimento" (150 países) foram as seguintes:
1995-2004: 4,9%;
2005-2012: 6,5%;
(cf. IMF, WEO, October 2013, p. 153, Statistical Appendix, Summary of World Output)
As projeções das médias para os próximos anos, segundo o FMI - que não existe para favorecer países "emergentes e em desenvolvimento" - é 4,5% (2013), 5,1% (2014), atingindo 5,5% em 2018.
Por que o Brasil, que tem muito mais recursos (não somente naturais, mas econômicos em geral, e humanos) do que todos, ou quase todos, esses países, seria diferente deles - e estaria condenado a amargar um medíocre crescimento médio de 3,3% nos próximos 15 anos?
Pela mesma razão que o "superávit primário" deveria ser eterno: porque esse é o desejo dos espoliadores do país. Inexiste outra explicação.
ATAQUE E FUGA
De janeiro de 2011 a setembro de 2013, o governo central (governo federal incluindo o Banco Central) passou R$ 462,948 bilhões aos bancos como juros. Se somarmos todo o setor público (governo central, governos estaduais, municipais e as estatais dos três níveis) essa magnitude vai para R$ 627,742 bilhões desperdiçados – na maior parte - em juros, com o governo aceitando taxas, para o conjunto de seus papéis, inclusive bem acima da taxa básica (em 2011: 19,1% ao ano; em 2012: 15,6% a.a.; em 2013, 14,1% a.a.). E essas taxas são apenas uma média de vários títulos ao longo do ano. Na verdade, em setembro último, a taxa acumulada em 12 meses estava em 18,7% ao ano (cf. BC, Relatório de Política Fiscal, Quadro XIII e Quadro XIV, 31/10/2013).
Os papéis do governo, apesar de renderem bilhões sem o menor risco, são apenas a base de uma pirâmide especulativa. Nos últimos 30 dias (15 de outubro a 14 de novembro) os juros dos derivativos – os famigerados "credit default swaps" (CDS) – usados, supostamente, como "hedge", isto é, seguro, contra a inadimplência de títulos públicos brasileiros deram um salto. Evidentemente, não há risco algum de inadimplência dos títulos públicos emitidos pelo governo brasileiro. Neste sentido, o secretário do Tesouro, Arno Augustin, tem razão ao falar em "ataque especulativo". Mas o problema é que especuladores são assim mesmo: realmente, o que eles sabem fazer são "ataques" especulativos – que não são sentidos por certas autoridades até que a economia, devido, precisamente, à permissividade com os especuladores, apresenta sinais de fragilidade. Muitas vezes esses "ataques" especulativos se confundem com – ou são a mesma coisa que - uma "fuga especulativa", com a manada se evadindo de um país que ela mesmo quebrou, com a ajuda de um governo pouco sagaz.
CRENÇAS
Diante do que já dissemos – ou citamos - poderia parecer sem sentido investigar a questão que, nos últimos meses, tem motivado uma crescente literatura econômica: quais as causas do fracasso econômico do governo Dilma? Porém, seria possível que estivéssemos simplificando demasiado os problemas – e, de certo modo, estaríamos mesmo – se nos ativéssemos apenas (!) à sangria financeira já mencionada, embora esta hemorragia seja quase um (desculpem-nos os leitores a imagem desajeitada) cume do abismo.
Portanto, como sintetizar as causas do fracasso econômico do governo Dilma numa única e mais abrangente causa?
Antes de tudo, pela mudança na política econômica - em relação, sobretudo, ao segundo mandato do presidente Lula (embora, como se viu no escândalo da entrega do campo petrolífero de Libra, o maior do mundo, também em relação ao primeiro mandato de Lula, período em que o principal feito, que não pode e não deve ser subestimado, foi o fim das privatizações).
Não estamos subestimando fatores supostamente "estruturais" - o importacionismo, a destruição de elos das cadeias produtivas internas e a desindustrialização, que alguns chegaram a chamar de "mudança de paradigma" - mas enfatizando que esses "fatores" são resultado de uma política econômica. As mudanças na economia têm sempre sujeito e predicado – mesmo quando um ou outro (ou os dois) são inconscientes de si mesmos.
Em suma, o governo Dilma, do ponto de vista econômico, preferiu ser uma continuação mais do governo Fernando Henrique Cardoso que do governo Lula. Daí, também, certos aspectos políticos assemelhados, especialmente a crença de que o marketing é um substituto aceitável para a verdade, e a obtenção do mesmo resultado: a condução do país a uma situação bastante difícil – digamos assim, não somente para evitar exageros, mas também porque o nosso objetivo não é apavorar as pessoas, e, sim, contribuir para a superação das dificuldades ao fornecer algum material para o debate. Nada mais nocivo, diante dos problemas de um país tão grande e complexo quanto o nosso, do que uma retórica cor de rosa – em que com os espinhos somente aparecem na dicção.
Como isso se concretizou?
Por uma série de outras "crenças" – e não conseguimos palavra mais suave para caracterizar esse tipo de concepção.
1) A crença de que o país não poderia continuar crescendo no mesmo ritmo do último ano do governo Lula, o que equivalia à restauração do famigerado "PIB potencial" dos tucanos, aquele que Lula, muito justamente, classificara como "uma imbecilidade de certos economistas", segundo a qual o país não poderia crescer mais do que 3,5% (agora, 3,3%, o que significa menos, pois os números divulgados publicamente pelos tucanos sempre são para enganar trouxas: durante o governo Fernando Henrique, o país cresceu a uma média anual de 2,3%; durante os dois primeiros anos do governo Dilma, ainda menos: 1,8%; enquanto isso, no governo Lula, o país cresceu à média anual de 4,05%, e, no segundo mandato, 4,63% - apesar da crise nos países centrais, que provocou um resultado negativo em 2009).

Observemos que, apesar de um crescimento do PIB de 7,5% e um aumento da produção industrial de 10,5% em 2010, o PIB da indústria de transformação – o setor determinante para o crescimento – ainda não voltara, em janeiro de 2011, ao nível de antes da erupção da crise nos países centrais, ou seja, ao nível do terceiro trimestre de 2008 (cf. IBGE, Contas Nacionais Trimestrais, Tabelas Completas, Série encadeada do índice de volume trimestral com ajuste sazonal).
A crença, contra todas as evidências dos 80 anos anteriores, de que o motor do crescimento era o investimento privado - e não os gastos, investimentos e financiamentos públicos, que foram tremendamente cortados ou bloqueados a partir de janeiro de 2011, tanto no que se refere ao Orçamento, como, também, às estatais -, fez o governo Dilma operar um retrocesso ao governo Lula

Vejamos a segunda "crença" que fez o governo Dilma operar um retrocesso em relação ao governo Lula:
2) A crença, contra todas as evidências dos 80 anos anteriores, inclusive àquelas do segundo mandato de Lula, de que o motor do crescimento era o investimento privado - e não os gastos, investimentos e financiamentos públicos, que foram tremendamente cortados ou bloqueados a partir de janeiro de 2011, tanto no que se refere ao Orçamento, como, também, às estatais.
Mesmo se considerarmos o total do desembolso orçamentário (orçamento do ano + restos a pagar de outros anos), houve uma brutal queda nos investimentos e gastos públicos em 2011, em relação ao ano anterior, atingindo funções como saneamento (-32,3%), urbanismo (-16,3%), segurança pública (-20,7%), comércio e serviços (-13,7%), energia (-7,1%), organização agrária (-6,9%), defesa nacional (-1,0%), ciência e tecnologia (-1,0%).
Este quadro geralmente foi ofuscado pelo aumento das despesas financeiras, a que nos referiremos mais adiante. Resta dizer que ele não foi essencialmente diferente em 2012. Mesmo somando os restos a pagar, que correspondem ao orçamento de anos anteriores, somente 19,30% da verba orçamentária de investimento foi liberada (e isso são apenas R$ 22 bilhões dos R$ 114 bilhões autorizados pelo Congresso).
Prestemos atenção a um dado que, até agora, não recebeu o destaque que merece: o investimento efetivo (ou seja, o investimento realmente desembolsado) das estatais federais - estatais produtivas, isto é, não financeiras - comparado ao do ano anterior, levou um tranco de -1,54% em 2011, depois de subir a uma média anual de +28,45% durante o segundo mandato do presidente Lula, segundo mostram os relatórios do Departamento de Coordenação e Governança das Empresas Estatais (DEST), do Ministério do Planejamento.
Até mesmo o Grupo Petrobras, cujos investimentos aumentaram 115,88% entre 2007 e 2010, sofreu uma redução nos investimentos efetivamente realizados em 2011 (-4,38%, em relação ao ano anterior). O aumento que houve em 2012 não fez com que retornasse à média anterior. Para que o leitor possa aquilatar a importância disso, lembramos que os investimentos do Grupo Petrobras foram 88,82% dos investimentos das estatais federais (não-financeiras) em 2011, e, em 2012, foram 90,66% desses investimentos.
Estranhamente (ou sintomaticamente), o "argumento" para a redução do investimento público era que este impedia o crescimento do investimento privado, contra toda a nossa história econômica anterior, e a dos outros países, onde os investimentos públicos sempre foram o estímulo por excelência aos investimentos privados.
Este "argumento", realmente, não é original: pelo contrário, ele é recorrente, sob o nome de "hipótese crowding out", nos ataques neoliberais à doutrina do economista inglês John Maynard Keynes. Já houve quem resumisse o "crowding out" à afirmação de que, se o Estado gasta dinheiro para determinado fim, os particulares não veriam razão de também gastar o seu dinheiro para o mesmo fim...
Apesar de caricata, essa versão tem o mérito de expor a falácia do "argumento": no nosso caso, o investimento público somente impediria o investimento privado, se o investimento total da sociedade fosse uma despesa fixa, rígida, imutável, impossível de crescer ou variar quanto a um máximo pré-determinado (certamente que por alguma divindade).
Não entraremos, aqui, no problema da poupança (que, para os neoliberais, constitui um limite intransponível ao investimento, quando, na verdade, é este último que cria a primeira). Mas é preciso ser justo até com o inimigo, por exemplo, neoliberais como Milton Friedman: este, pelo menos, coloca o aumento da taxa de juros - que, na versão dele, sucederia a um aumento da despesa pública por causa dos investimentos públicos - como mediação para o "crowding out". Esquematicamente: o investimento privado seria desviado para a especulação pelo aumento da taxa de juros, que seria provocado pelo aumento da dívida pública, que seria consequência do investimento público.
As coisas não são assim, até porque o Estado pode impor – como, aliás, impõe – as condições para o financiamento de sua dívida (e o investimento público, mais ainda quando também aumenta o investimento privado, cria riqueza, via tributos, também para o Estado, ou seja, para as finanças públicas).
Mas, pelo menos, a ciranda de Friedman, apesar de esquemática e grosseira, não é tão absurda quando as considerações do sr. Mantega, pois, no parecer deste último, o investimento público impediria o investimento privado, mas as altas taxas de juros não teriam esse efeito – tanto assim que o corte do investimento público foi executado ao mesmo tempo em que as taxas básicas de juros eram aumentadas cinco vezes seguidas, com acordo completo de Mantega.
ALIENS
3) Quase como corolário direto da "crença" a que acabamos de nos referir, há outra: a de que o "investimento direto estrangeiro" (IDE) é o fator decisivo para o crescimento do país – e que, para desenvolver o país, o principal setor da economia teriam que ser as filiais de multinacionais.
[Estamos, aqui, evitando a hipótese inversa: a de que a crença no "investimento" estrangeiro como fator principal do desenvolvimento nacional (o paradoxo apenas explicita a incoerência da tese) levou à crença de que o investimento privado é a principal mola do crescimento. Como já demonstramos inúmeras vezes desde 1994, este é o caso dos tucanos mais viscerais, que dedicam um ódio especialmente rancoroso ao empresariado nacional. Mas não parece ser o caso da presidente Dilma, apesar de seus elogios, totalmente descabidos, a Fernando Henrique ("acadêmico inovador", "político habilidoso", "ministro-arquiteto de um plano duradouro de saída da hiperinflação", "presidente que contribuiu decisivamente para a consolidação da estabilidade econômica", etc.).]
Mas, voltemos ao problema econômico do "investimento direto estrangeiro" (IDE): não se trata, aqui, do capital estrangeiro em geral. Como explicitaremos mais adiante, é evidente que se pode ter a presença de capital estrangeiro sem ferir ou lesar os interesses do país – em especial, sem ferir ou lesar o interesse em crescer e desenvolver-se que é parte do que chamamos Nação.
Estamos nos referindo especificamente ao dinheiro estrangeiro que entra no país para comprar empresas brasileiras, sem contribuir em nada, pelo contrário, para aumentar a taxa de investimento da economia. Mais adiante desenvolveremos a questão, já bastante conhecida dos nossos leitores. Por agora, basta observar que de janeiro de 2011 a outubro de 2013 entraram no país US$ 181 bilhões em "investimento direto estrangeiro" (IDE), ao mesmo tempo que a taxa de investimento, na base móvel trimestral (um indicador de tendência), caía de 20,73% do PIB (4º trimestre de 2010) para 18,86% do PIB (2º trimestre de 2013).
O IDE causou apenas desnacionalização – e, como consequência, desindustrialização, pois as empresas adquiridas por dinheiro externo passaram a fazer suas compras no exterior e a remeter lucros, reduzindo o investimento.
O resultado foi o encolhimento, verdadeiramente estúpido, da participação da indústria de transformação no PIB – e, por consequência, a estagnação atual da economia (e estagnação não deixa de ser um nome caridoso para aquilo que, em realidade, é um tremendo retrocesso). Como diz um economista:
"... o crescimento de longo-prazo depende da composição setorial da produção, mais especificamente depende da participação da indústria de transformação no PIB. Isso porque a indústria é o motor de crescimento de longo-prazo das economias capitalistas uma vez que ela é a fonte ou a principal difusora do progresso técnico para a economia como um todo, é o setor com maiores encadeamentos para frente e para trás na cadeia produtiva, é a fonte das economias estáticas e dinâmicas de escala e o setor cujos produtos possuem a maior elasticidade renda de exportação, permitindo assim o relaxamento da restrição externa ao crescimento. Sendo assim, o crescimento da economia no longo-prazo é extremamente dependente do crescimento da produção industrial.
"... a estagnação recente da economia brasileira é decorrência da estagnação da produção industrial. (…) Como a indústria é o setor da economia que utiliza mais intensamente máquinas e equipamentos não é surpresa se verificar que a estagnação/queda da produção industrial tem sido seguida por uma forte contração da formação bruta de capital fixo da economia brasileira a partir do segundo trimestre de 2011.
O autor aponta o "processo de substituição da produção doméstica por importações, a qual se expressa na brutal elevação do coeficiente de penetração das importações, que passou de 10% em 2003 para 21% em 2012. A substituição da produção doméstica por importações explica o aparente paradoxo do aumento do faturamento da indústria num contexto de estagnação da produção física, uma vez que a indústria brasileira está se transformando crescentemente numa maquiladora" (cf. José Luis Oreiro, "A Macroeconomia da Estagnação com Pleno-Emprego no Brasil", in "A Economia Brasileira na Encruzilhada", AKB, outubro 2013, p. 77 e 80, grifos nossos).
O fato – acrescentamos nós e por nossa inteira responsabilidade – é que não existe crescimento sem indústria nacional. As consequências apontadas, muito justamente, pelo autor que citamos, são consequências da desnacionalização, efetivada através de enxurradas de IDE na economia, sob os aplausos algo oligofrênicos do sr. Mantega, no momento em que os países centrais, acicatados pela crise, emitiam trilhões, especialmente os EUA, mas também a UE (leia-se Alemanha) e o Japão.
Hoje, o nosso país é o quarto maior alvo de IDE no mundo (cf. UNCTAD, "World Investment Report 2013", Genebra, 2013, p. XIV e p. 3).
Os capatazes do IDE costumam agitar o exemplo da China (segunda maior afluência de IDE no mundo, logo após os EUA, com o dobro do influxo de IDE do Brasil) para, supostamente, demonstrar as virtudes da sua panaceia. Um trecho do último relatório da UNCTAD – que é insuspeito, pois seu objetivo é, precisamente, convencer os incautos de que a desnacionalização das suas economias, em proveito dos países imperialistas, é o futuro da humanidade – servirá para termos uma ideia de como é falacioso esse marketing:
"O Estado chinês é o acionista majoritário das 150 maiores empresas do país e as estatais constituem 80% do valor de mercado das ações em Bolsa" (UNCTAD, rel. cit., p. 12).
Essa é a base do crescimento da China.
Quanto aos EUA, já analisamos essa questão, há quase quatro anos, ao abordar o estoque de IDE no mundo:
"... o maior estoque de ‘investimento direto estrangeiro’ do mundo está dentro dos EUA (US$ 2,3 trilhões em 2008). Perto dele, os US$ 378 bilhões de estoque dentro da China são um mero troco. No entanto, não há perigo de que a economia norte-americana seja desnacionalizada por causa disso, ou de que o capital nacional [norte-americano] seja esmagado pelas multinacionais de outros países. E não apenas porque a propriedade em mãos norte-americanas é colossalmente superior, mas porque, da mesma forma que outros países (a própria China, por exemplo), os EUA não permitem que o ‘investimento direto estrangeiro’ compre ou faça qualquer coisa que lhe dê na telha. O governo e o Congresso norte-americanos determinam o que estrangeiros podem ou não comprar - como aprenderam os japoneses e os sauditas. Esse investimento ‘direto’ estrangeiro de US$ 2,3 trilhões nos EUA serve perfeitamente à casta econômica dominante naquele país. De certa forma, é uma "americanização" dos recursos de outros países e não uma desnacionalização da economia dos EUA - apesar de que esse estoque equivale a 16% do PIB norte-americano (v. base de dados da UNCTAD e a última edição do seu relatório anual, "World Investment Report 2009"). A diferença entre o IDE nos EUA e o IDE no Brasil é, fundamentalmente, àquela, já referida, entre um país imperialista e um país que não é imperialista. A dinâmica não é a mesma. Aliás, é oposta" (v. HP 26/02/2010, "O canto das sereias fracassadas 3: o IDE e a hipervalorização do real", grifos atuais).
TAXAS
4) Enquanto isso, ocorria algo que é difícil classificar como "crença", por mais pervertida que seja. Precisamente, o que ocorreu com os juros, como, em parte, já mencionamos.
Correspondendo aos aumentos de juros, que começaram 19 dias depois da posse da presidente, o "superávit primário" - o desvio de verbas para juros - do Governo Central (Tesouro, Previdência e Banco Central) aumentou 18,7% em 2011, em relação a 2010, e as transferências aos bancos a título de juros superaram em muito o "superávit": +45% em relação ao ano anterior. Os aumentos de juros foram (como os atuais) tão absurdos que não podemos dizer que existisse alguma "crença" de que eles atuariam sobre a inflação – que era apenas especulação com commodities no exterior, longe da ação do Banco Central, e nunca esteve, em momento algum, fora de controle.
O que havia era uma ânsia sôfrega por entregar dinheiro aos bancos, fundos e outros especuladores, sobretudo com sede em outros países, e ser "confiável" aos nababos financeiros que haviam apoiado, nas eleições, o adversário da presidente Dilma Rousseff.
Após um período em que – por pressão, inclusive, da própria presidente – as taxas básicas de juros foram reduzidas, voltaram outra vez a aumentar, desta vez sem protestos por parte do governo.
Talvez a pior de todas as "crenças" - a mais nociva para o país – seja a de que aumentos de juros ou juros altos são remédio contra a inflação. Toda a suposta estratégia anti-inflacionária dos neoliberais é, na verdade, um pretexto para descarregar sobre os países periféricos – como o nosso – as mercadorias encalhadas dos monopólios privados dos países centrais, e, ao mesmo tempo, saquear seus recursos monetários, sobretudo os recursos públicos, os recursos do Erário.
Daí a relação dos juros irracionais com a, pessimamente chamada, "âncora cambial". Em suma, esse falso combate à inflação é mero subsídio ao preço das mercadorias importadas às custas do país, tornando-as mais baratas que a produção interna devido à manipulação da taxa de câmbio – a hipervalorização das moedas locais frente ao dólar – induzida pelas altas taxas de juros que atraem montanhas de dólares para dentro do país.
Logo em seguida nos estenderemos um pouco mais sobre o problema. Resta dizer, agora, que altas taxas de juros mais câmbio manipulado para subsidiar importações significam a destruição crescente e violenta da economia do país para favorecer bancos e demais monopólios externos. Nada tem a ver com o combate ou controle da inflação, exceto se o lema for destruir o país para combater a inflação. Sem país, sem produção e sem dinheiro, realmente, é difícil haver inflação. Mas também é difícil que haja população...

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