segunda-feira, 21 de outubro de 2013

A batalha pelo pré-sal e a suspensão do leilão de Libra


Disse a presidente Dilma que o leilão do maior campo petrolífero do mundo – o de Libra, no pré-sal – poderá render algo que "a gente calcula em torno de 368 bilhões de dólares nos próximos 35 anos".
Não sabemos se, ao fazer esse cálculo, a presidente percebeu que US$ 368 bilhões em 35 anos são apenas US$ 10,5 bilhões, em média, por ano, para um campo cuja receita é estimada em R$ 2,3 trilhões – ao câmbio da última quarta-feira, US$ 1,063 trilhão - em 35 anos.
É pouco provável que a presidente tenha efetuado essa operação, pois, no mesmo discurso, diz que "é muito difícil falar nos números porque os números são muito... são cifras que a gente tem dificuldade de imaginar".
Mais difícil de imaginar do que esses números, nos parece, é imaginar que a missão do governo brasileiro seja a de cobrar royalties das petroleiras externas, tal como fazia o falecido rei Faissal, nos dias remotos em que a Aramco pertencia à Chevron. Ainda mais porque Faissal, pelo menos, tinha uma atenuante: não havia empresa alguma equivalente à Petrobrás na Arábia Saudita do seu tempo.
No Brasil, pelo contrário, não apenas todo o desenvolvimento da indústria petrolífera foi realizado por uma empresa brasileira – e pública – como esta empresa é a mais avançada do mundo na exploração do petróleo em águas profundas, e, especialmente, no pré-sal e em Libra, que são descobertas da Petrobrás, exatamente no local em que a Shell, antes, fracassara.
Mesmo antes da existência da Petrobrás, essa posição de cobrador de royalties jamais foi considerada progressista em nosso país – nem mesmo pela direita. O saudoso amigo e grande combatente Euzébio Rocha, autor da lei 2.004, que instituiu o monopólio estatal do petróleo com a Petrobrás como sua executora, fez um relato muito significativo da derrubada do projeto denominado "estatuto do petróleo", elaborado pelos ministros do governo Dutra ligados à Standard Oil (entre eles, Raul Fernandes e João Neves da Fontoura). Contou Euzébio, em 1984:
"... o governo de Dutra só tinha um homem que não era engrenado com a reação, que era o Mário Bittencourt Sampaio [diretor-geral do Departamento Administrativo do Serviço Público (DASP)]. Era o único que resistiu e que com a nossa ajuda conseguiu pôr abaixo o Estatuto do Petróleo, conseguiu acabar convencendo o Dutra da loucura do Estatuto do Petróleo" (cf. Euzébio Rocha, depoimento ao CPDOC/FGV).
O "estatuto do petróleo" partia – como todo estatuto entreguista – da nossa incapacidade congênita para explorar o petróleo que existia no Brasil, para abrir o setor às multinacionais. Como ressalta Euzébio, "o Dutra era um homem absolutamente conservador, um homem dominado pelas estruturas de poder conservador e dependente do país".
Por consequência, seu Ministério:
"... era extremamente reacionário, e com uma formação doutrinária inspirada nos livros econômicos dos países ricos, o que talvez seja um dos aspectos mais graves para nós e que constantemente nos inibe de compreender o problema econômico e político do país".
Euzébio Rocha, além de deputado e advogado, foi professor de economia. Sua visão do governo Dutra é confirmada pelo depoimento do próprio Mário Bittencourt Sampaio. Diz ele que nem o presidente do Conselho Nacional do Petróleo nomeado por Dutra apoiou sua posição contra o "estatuto do petróleo":
"O general João Carlos Barreto me disse muito claramente: ‘Está tudo muito bonito, mas se não houver capital suficiente, capital para nós, nunca teremos uma solução’" (Mário Bittencourt Sampaio, CPDOC/FGV - Projeto Memória da Petrobrás).
Bittencourt Sampaio já havia elaborado uma resposta para essa objeção: simplesmente, era preciso – e possível – gerar esse capital dentro do Brasil ou ele nunca existiria:
"Daí nós termos insistido e feito a compra de refinaria, porque era preciso refinar para ter dinheiro bastante e barato, e transportar, oleoduto e navios petroleiros, como base para investir na pesquisa. Pode parecer que no primeiro lance nós deixamos de lado a pesquisa. Não. Deixamos algum dinheiro para pesquisa; mas o dinheiro para pesquisa era tão vultoso, na época, que era preciso criar uma fonte própria para isto. É por isso que a solução do petróleo tem que ser sempre integral: sem a integração das atividades, não se realiza. A Petrobrás não faria esses investimentos se ela não dispusesse do refino e do transporte".
Esses homens estavam agindo e pensando numa situação histórica muito menos favorável que a de hoje. Antes de tudo, o petróleo descoberto era quase um goteja- mento diante da produção e das reservas atuais. Mas não faltava a eles grandeza e sentimento nacional. Até o presidente Dutra se sensibilizou e não tentou mais aprovar o "estatuto do petróleo".
Hoje nós temos a Petrobrás – e temos, descoberto por ela, o maior campo petrolífero do mundo, além de vários outros. Mas, justamente agora é que irrompe outra vez o entreguismo, de forma totalmente irracional, leiloando o que a Petrobrás descobriu, e, para isso, cometendo quase todos os atropelos legais possíveis.
No texto abaixo, do consultor legislativo Paulo César Ribeiro Lima, autor de "Pré-sal - o Novo Marco Legal e a Capitalização da Petrobras" (Synergia Editora, 2011), há um resumo dos principais absurdos e irregularidades. Trata-se da parte final do trabalho "A disputa pelo lucro do Pré-Sal e o cancelamento da licitação de Libra".
Há duas observações que gostaríamos de fazer.
A primeira é referente à estimativa quanto ao campo de Libra. Além da que é mencionada pelo autor, citamos, em nossa edição anterior, a partir de relatório do Tribunal de Contas da União (TCU), que, em 2010, a Gaffney, Cline & Associates, empresa inglesa de consultoria em petróleo contratada pela ANP, estimou para Libra um volume entre 16,32 bilhões de barris (baixa estimativa) e 52,49 bilhões de barris (alta estimativa), "sendo a melhor estimativa" 31,49 bilhões de barris, avaliada numa área de 727 km². Como nota o TCU, essa área é apenas metade daquela que foi agora colocada em leilão (1.547 km²).
A segunda é em relação ao cálculo do "óleo-lucro" ou "excedente em óleo": no texto, o autor admite um custo de produção, aproximadamente, de 13%, semelhante ao do campo de Marlim. Como sabe o leitor, em nossas matérias adotamos, para o pré-sal, a estimativa da Petrobrás, 40%. Naturalmente, com o tempo e as novas conquistas tecnológicas, esse custo tende a cair. Mas essa diferença não tem importância para as conclusões. Até mesmo porque, com o critério de 40%, o Excedente em Óleo valeria mais de um trilhão de reais.
C.L.
PAULO CÉSAR RIBEIRO LIMA
A área de Libra, descoberta no ano de 2010, está localizada no Pré-Sal da Bacia de Santos a apenas 170 km da costa. O volume in situ esperado para a área de Libra é de 26 bilhões a 42 bilhões de barris de petróleo, podendo-se chegar a um volume recuperável de petróleo de 8 a 12 bilhões de barris.
Supondo-se que Libra vá produzir 10 bilhões de barris, um valor de US$ 100 por barril e uma taxa de câmbio de 2,3 Reais por Dólar, Libra poderá gerar uma receita bruta de R$ 2,3 trilhões ao longo de aproximadamente 35 anos. Admitindo-se um custo de produção de R$ 300 bilhões e royalties de R$ 345 bilhões, tem-se um Excedente em Óleo de aproximadamente R$ 1,6 trilhão para ser repartido entre a União e o contratado sob o regime de partilha de produção.
A licitação de Libra sob o regime de partilha de produção está prevista para ocorrer no dia 21 de outubro de 2013. Admitindo-se que a oferta vencedora seja de 41,65%, percentual mínimo estabelecido no Edital para o Excedente em Óleo para a União, esse Excedente poderá variar em termos efetivos de 15% a 45,56%.
Observa-se, então, que o percentual do Excedente em Óleo para a União é variável, ao contrário do que dispõe os artigos 10 e 18 da Lei nº 12.351/2010. Em razão da possibilidade de queda da produção média dos poços e do preço Brent, o Contrato e o Edital não garantem o percentual mínimo de 41,65% do Excedente em Óleo para a União.
Destaque-se, ainda, que a Lei nº 12.351/2010 veda, em qualquer hipótese, o ressarcimento dos royalties ao contratado. Entretanto, o Contrato de Libra assegura ao contratado, em caso de descoberta comercial, a apropriação originária do volume correspondente aos royalties devidos e pagos. Observa-se, então, que essa apropriação é ilegal.
Dessa forma, a Resolução CNPE nº 5/2013, o Edital e Contrato estão em desacordo com a Lei nº 12.351/2010, o que deve determinar o cancelamento da licitação e a adoção de providências para a adequação dos documentos ao mandamento legal.
Do ponto de vista técnico, na indústria de petróleo tanto os governos quanto as empresas buscam aumentar o índice de produtividade dos poços com o objetivo de aumentar a rentabilidade dos campos. O Contrato de Libra, no entanto, representa um desestímulo a se buscar altos índices de produtividade, pois quanto menor a produção do poço, menor a média da produção diária de petróleo do campo e quanto menor essa média, maior o percentual do Excedente em Óleo para o contratado.
Foram feitas duas simulações para Libra: cenário "padrão" e cenário desfavorável. No cenário "padrão", admitiu-se uma produção média diária dos poços de 12 mil barris, um preço Brent de US$ 120 por barril e um percentual ofertado de Excedente em Óleo para a União de 41,65%. Nesse cenário, a arrecadação de Excedente em Óleo para a União, de 2019 a 2030, seria de US$ 129,38 bilhões. O contratado receberia pelo Custo em Óleo US$ 87,30 bilhões, pelos royalties devidos US$ 70,22 bilhões e US$ 181,25 bilhões a título de Excedente em Óleo.
Em um cenário desfavorável, admitiu-se uma produção média diária de 4 mil barris por poço e um preço Brent de US$ 80 por barril. Nesse caso, o percentual do Excedente em Óleo para a União seria de 15,2%, sendo gerada uma arrecadação de Excedente em Óleo para a União de apenas US$ 16,60 bilhões entre 2019 a 2030. O contratado receberia pelo Custo em Óleo US$ 156,04 bilhões, pelos royalties devidos US$ 46,81 bilhões e US$ 92,62 bilhões a título de Excedente em Óleo.
No Campo de Marlim, observou-se, no pico de produção em 2002, uma média de produção de petróleo dos poços produtores de 5,48 mil barris por dia. No primeiro semestre de 2009, o preço Brent médio foi de US$ 44,40 e a média de produção de petróleo foi de 3,34 mil barris por dia por poço. Nesse trimestre, a alíquota efetiva da Participação Especial foi de 30,7%, devida sob o regime de concessão.
Se, no primeiro trimestre de 2009, o Campo de Marlim operasse nos termos do Edital de Libra, ele estaria sujeito a um Excedente em Óleo para a União de apenas 15%. No entanto, sob o regime de concessão, a alíquota efetiva de Participação Especial foi, como já mencionado, de 30,7%, o que representa um percentual duas vezes maior.
A primeira crítica de mérito que pode ser feita ao Edital de Libra é que, no caso de queda de preço e da produção média dos poços, o Excedente em Óleo da União cai muito, ao passo que, no caso de aumento de preço e da produção média dos poços, o Excedente em Óleo para a União aumenta pouco.
A segunda crítica de mérito é que para se ter um Excedente em Óleo mínimo para a União de apenas 41,65% é necessária uma alta cotação do preço Brent.
A terceira crítica de mérito ao Edital é que a produção média dos poços não deveria ser adotada como a segunda variável para ajuste do percentual do Excedente em Óleo a ser efetivamente destinado para a União, pois como já citado, isso representa um desincentivo a poços de alto índice de produtividade.
É importante registrar, ainda, que no início da produção, os poços tendem a apresentar uma alta vazão de óleo. Contudo, ao longo do tempo, essa produção tende a cair. No Campo de Marlim, houve uma redução na produção média dos poços de 5,48 mil barris por dia para 1,85 mil barris por dia, o que representa uma redução de cerca de três vezes.
O mesmo fenômeno pode ocorrer em Libra. Dessa forma, o Excedente em Óleo para a União poderia cair de 41,65% para 15,2%, em um momento em que todo o Custo em Óleo já poderia ter sido recuperado pelo contratado.
Essa situação acarretaria graves perdas de arrecadação do Excedente em Óleo para a União e grandes ganhos para o contratado. Isso significa, na prática, que a União, em vez do contratado, estaria assumindo o risco de quedas de produção média dos poços e de preços Brent.
Até 2030, grandes são as necessidades de recursos para as áreas de educação e saúde. Tanto no cenário "padrão", descrito no item III deste trabalho, quanto no cenário desfavorável, descrito no item IV deste trabalho, poucos recursos decorrentes da exploração da área de Libra seriam destinados a essas áreas.
No cenário "padrão", apesar da alta produção média dos poços e do alto preço Brent, apenas US$ 64,69 bilhões seriam destinados às áreas de educação e saúde. No cenário desfavorável, somente US$ 8,30 bilhões seriam destinados a essas áreas.
Para se alterar esse quadro de baixas receitas governamentais, sugerem-se algumas providências. A primeira seria que o contratado recuperasse o Custo em Óleo ao longo dos anos de produção, e não tão rapidamente como disposto no Contrato. A segunda providência seria estabelecer uma pequena faixa de ajuste do percentual do Excedente em Óleo para a União em razão apenas da produção total de Libra, independentemente da produção média dos poços. A terceira seria aumentar a faixa do percentual de Excedente em Óleo para a União de 15% a 45,56% para uma faixa de 60% a 86%.
Adotadas essas providências, o custo de extração de Libra poderia ser da ordem de US$ 15 por barril e o Excedente em Óleo para a União seria de cerca de 73%. Admitindo-se um preço Brent de US$ 120 por barril e uma produção média dos poços de 12 mil barris por dia, as receitas da União aumentariam de US$ 129,38 bilhões para US$ 257,51 bilhões de 2019 a 2030.
Assim sendo, o Excedente em Óleo para a União da área de Libra a ser comercializado pela PPSA e destinado ao Fundo Social geraria recursos para as áreas de educação e saúde de R$ 296 bilhões de 2019 a 2030, admitindo-se uma taxa de câmbio de 2,3 Reais por Dólar.
Ressalte-se, por fim, que nos termos do Contrato, quando a produção média dos poços for alta, o percentual do Excedente em Óleo para a União será alto, mas o próprio Excedente em Óleo poderá ser baixo, em razão da dedução dos custos de investimento. Quando a produção média dos poços for baixa, o percentual do Excedente em Óleo para a União será baixo e o próprio Excedente em Óleo poderá ser alto, pois todos os custos de investimento já terão sido recuperados pelo contratado. Isso pode trazer uma grande redução no Excedente em Óleo para a União, principalmente nos primeiros anos de produção, quando são recuperados os custos de investimento do contratado.

Em suma, é fundamental que a licitação de Libra seja cancelada e os termos do Edital e do Contrato sejam revistos, pois eles privilegiam os interesses do contratado em detrimento do interesse público. Caso a licitação ocorra como previsto, serão muito baixos os recursos de Libra destinados ao Fundo Social, e consequentemente às áreas de educação e saúde.

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