quarta-feira, 8 de maio de 2013

O programa econômico do 1º governo Getúlio e a industrialização do país (1)


O texto que hoje começamos a publicar foi extraído do artigo "Desenvolvimentismo e política econômica: um cotejo entre Vargas e Perón", dos professores Pedro Cezar Dutra Fonseca (Departamento de Ciências Econômicas da UFRGS) e Andrés Ferrari Haines (Núcleo de Estudos Internacionais da UFRJ).
Os leitores do HP, com a assiduidade que lhes é característica, já conhecem o primeiro desses autores, um dos organizadores da coletânea "A Era Vargas" (editora UNESP, 2012), juntamente com o também professor Pedro Paulo Zahluth Bastos (Departamento de Política e História da Unicamp).
Nosso interesse ao extrair esse texto não é expor o assunto principal dos autores – a comparação das estratégias de Getúlio Vargas e Juan Domingo Perón, que o leitor poderá encontrar na íntegra do artigo, publicado na revista "Economia e Sociedade" (v. 21, Número Especial, Campinas, dez. 2012, páginas 1043 a 1074).
Antes nos interessa a sintética exposição do programa econômico realizado pelo primeiro governo de Getúlio Vargas – motivo até hoje de tantas deformações.
Na reprodução do texto, optamos por não fazer adaptações que seriam naturais tendo em vista a publicação em jornal. Pelo contrário, estendemos as referências bibliográficas, para que o leitor tenha oportunidade de conferir as fontes – ou, simplesmente, de tomar conhecimento de alguns dos trabalhos citados.























Uma última observação – inteiramente nossa, ou seja, pela qual os autores não são responsáveis - sobre o trecho: "No ano seguinte, com a instauração da ditadura do Estado Novo...".
Getúlio jamais negou, inclusive publicamente, que o Estado Novo fosse uma ditadura. Naturalmente, como disse Lenin, só uma limitação ideológica tacanha foi capaz de tornar completamente excludentes os termos "ditadura" e "democracia". Todo Estado é democracia para uns e ditadura para outros. Daí o uso do termo "ditadura democrática do proletariado e do campesinato" pelo mesmo autor em "Duas Táticas da Social-Democracia na Revolução Democrática" (1905).
A questão essencial, portanto, é: para quem o Estado Novo era uma ditadura? Ou: para quem o Estado Novo era uma democracia?
Não temos dúvida de que, para as amplas massas do nosso povo, o Estado Novo era altamente democrático, assim como era uma ditadura sobre as oligarquias e serviçais de forças externas que antes infelicitavam a Nação.
Mas é compreensível que, depois de passada a sombria ditadura de 1964, tal questão não seja de fácil compreensão, sobretudo quando a expusemos de forma tão rápida e incompleta.
O leitor, naturalmente, não precisa – pelo menos não em um primeiro momento - concordar conosco nesta questão para apreciar a obra econômica do primeiro governo Getúlio, tal como exposta pelos professores Fonseca e Haines. Nosso objetivo é que todos pensem com sua própria cabeça – e assim possam tirar as conclusões que lhes parecerem pertinentes e o melhor proveito do texto que hoje publicamos.
C.L.
PEDRO CEZAR DUTRA FONSECA E ANDRÉS FERRARI HAINES
A defesa da industrialização do Brasil por parte de Vargas antecede sua ascensão à presidência do país em 1930. Desde suas primeiras manifestações em que há registro, ainda da época de estudante, nota-se a defesa da necessidade da diversificação econômica do país como forma de resguardá-lo das crises e fortalecê-lo economicamente. Essa posição vinha ao encontro dos ideais positivistas do governo do Rio Grande do Sul, com quem Vargas identificava-se e em cujo partido, o Partido Republicano Rio-Grandense (PRR), iniciou sua carreira política. A diversificação, no caso, era entendida na maior parte das vezes como dentro do setor primário, com a defesa da policultura e da produção para o mercado interno. Não se criticava em si a agroexportação, mas o fato de a mesma concentrar-se em um ou dois produtos, em um período em que o café perfazia mais de dois terços do valor exportado pelo Brasil. Como exemplo, pode citar-se o discurso em homenagem a Afonso Pena, ao visitar o Rio Grande do Sul em 15 de agosto de 1906, quando Vargas o saudou em nome dos estudantes: "Amarga resultante para quem se vê coato a comprar, manufaturados do estrangeiro, os gêneros da própria matéria-prima que exporta" (cf. Pedro Cezar Dutra Fonseca, "Vargas: o capitalismo em construção", São Paulo, Brasiliense, 1989, p. 35).
Nota-se, no contexto, uma postura de Vargas já mais arrojada, pois se manifestava adepto de uma proposta de diversificação que se estendia ao beneficiamento das matérias-primas locais, as então denominadas "indústrias naturais". Essa expressão acenava para a complementaridade entre interesses agrários e industriais, pois se tratava fundamentalmente da agroindústria, responsável, de um lado, por gerar demanda para a produção primária e, de outro, por prescindir de protecionismo para garantir seu próprio mercado favorecido. Dentre outros motivos, pela barreira representada pelo custo dos transportes e a própria taxa cambial desvalorizada, em várias conjunturas, no caso do similar importado. A concepção, assim, incluía a defesa das atividades industriais, mas, a rigor, não chegava a contrariar a tese largamente aceita, segundo a qual o Brasil era um país de "vocação agrária".
Com a assunção à Presidência, a opção de Vargas pela industrialização foi gradualmente se tornando mais explícita e frequente até atingir, em meados da década de 1930, a centralidade de seus discursos com temática econômica. A interpretação segundo a qual 1930 representou um ponto de ruptura de um modelo centrado na agroexportação em prol de outro, com epicentro na indústria – o modelo de substituição de importações – é clássica na literatura sobre economia brasileira desde Furtado (v. Formação Econômica do Brasil, 1959) e Tavares (v. Da substituição de importações ao capitalismo financeiro, Zahar, 1972).
Não cabe aqui repisar toda a argumentação de ambos. Ela pode ser sintetizada como resultado do estrangulamento externo agudo, decorrente da crise internacional, associado à opção do governo por manter o nível de renda da economia cafeeira por meio de desvalorização cambial e financiamento, com o crédito ancorado em emissão monetária (ou mesmo impostos, como mostrariam trabalhos posteriores). O efeito multiplicador de tal intervenção sobre a demanda agregada doméstica contribuiu para o deslocamento do "centro dinâmico" da economia, com a indústria crescendo a taxas sem precedentes: 11,2% anuais entre 1933-39, enquanto o crescimento da agricultura alcançava pouco mais de 2% entre 1934-37, para uma taxa média da economia de 6,5% ao ano (cf. Furtado, op. cit., ed. Nacional, 1977, p. 195; Annibal V. Villela e Wilson Suzigan, Política do governo e crescimento da economia brasileira, Rio, Ipea/Inpes, 1973, p. 211-212).
Salienta-se, ainda, que o crescimento industrial não se restringiu aos bens de consumo não duráveis – os maiores responsáveis porcentualmente pelo valor agregado da indústria como alimentos, têxteis e bebidas. Os segmentos industriais que mais cresceram entre 1933-39 (conquanto muitas vezes partissem de uma base pequena, o que colabora para majorar a magnitude do crescimento porcentual) foram os de papel e papelão, metalúrgica e minerais não metálicos, enquanto, entre 1932-37, a produção física de ferro gusa aumentou 240%, a de aço em lingotes 123% e a de laminados 142%. No mesmo período, o consumo aparente de cimento cresceu 110% e o de cimento nacional 282% (cf. Villela e Suzigan, op. cit., p. 216; Liana Maria Aureliano, No limiar da industrialização, São Paulo, Brasiliense, 1981, p. 123 e 132; Werner Baer, The development of Brazilian steel industry, Nashville, Tennessee, Vanderbilt University Press, 1969, p. 80-81).
Embora o crescimento industrial fosse expressivo, do ponto de vista metodológico, não basta o registro das referidas taxas para que se corrobore a hipótese de ter havido um projeto governamental voltado à industrialização. Elas podem ajudar como uma primeira aproximação (ou pelo menos para rejeitar a hipótese alternativa, que a indústria não crescera ou não houve a "mudança de modelo"), posto que o crescimento industrial, em tese, poderia resultar de medidas não necessariamente intencionais do governo. O próprio Furtado assim entende, ao afirmar que "a recuperação da economia brasileira, que se manifesta a partir de 1933, não se deve a nenhum fator externo e sim à política de fomento seguida inconscientemente no país e que era subproduto da defesa dos interesses cafeeiros". Há de se considerar, todavia, que a interpretação de Furtado decorre em boa medida do instrumental utilizado: ao centrar sua análise nas políticas monetária, fiscal e cambial, pôde de forma pioneira mostrar o governo brasileiro lançando mão de uma política anticíclica que, ao garantir o nível de renda da economia cafeeira, logrou obter um impacto maior que o almejado em todo o conjunto da economia. Pode-se asseverar que o estudo das citadas políticas econômicas instrumentais nem sempre permite detectarem-se as intenções dos policymakers, posto que a implementação das mesmas prende-se, na maior parte das vezes, a razões inerentes às políticas de estabilização, de busca do equilíbrio macroeconômico ou das contas públicas (ou a uma lógica mais instrumental que propriamente "finalística") como do nível geral de preços, orçamento público ou balanço de pagamentos (cf. Pedro Cezar Dutra Fonseca, Sobre a intencionalidade da política industrializante no Brasil na década de 1930, Revista de Economia Política, São Paulo, nº 89, 2003, p. 134).
Esses objetivos, em tese, podem ser encampados por diferentes governos, por opção ou necessidade, independentemente da existência de um projeto econômico-político de maior envergadura. Detectar, todavia, um projeto de longo prazo (o qual, ao contrário de um "plano de governo", nunca é evidente por si mesmo) é sempre um desafio a economistas e demais cientistas sociais. Para ser desnudado, faz-se necessário recorrer a uma metodologia que vá além dos dados ex-post das variáveis conjunturais. Devem incluir-se, no entanto, na reconstituição histórica, não só outros elementos, como considerar as medidas adotadas, dentre elas, as mudanças na legislação econômica e a criação de instituições e órgãos no aparelho estatal, mas também buscá-los como material empírico ao discurso e demais pronunciamentos das autoridades, capazes de ajudar a desvendar as razões de suas opções. Tal procedimento torna-se necessário ante a hipótese inicial sobre a centralidade do desenvolvimento econômico no projeto de Vargas, este entendido como industrialização por meio da substituição de importações.
A análise do discurso de Vargas durante os quinze anos que compreendem seu primeiro governo não deixam dúvida sobre a intencionalidade da industrialização, a qual gradualmente se tornou o epicentro de um projeto, em geral, denominado, com certa licenciosidade, de "nacional-desenvolvimentista".
[NOTA DO AUTOR: A análise aqui se centra no primeiro governo de Vargas porque, além do motivo já mencionado de se pretender mostrar a mudança de modelo com relação ao governo anterior, ao fato de que, com respeito ao segundo período, de 1951 a 1954, há relativo consenso na literatura sobre sua opção industrializante. A defesa desta tese respalda-se não só no nacionalismo e no clima de radicalização política que desaguou no suicídio de Vargas, como em fatos como a criação da Petrobrás e a Instrução 70 da Superintendência da Moeda e do Crédito (Sumoc), responsável pela formulação da política monetária a qual, diante da crise cambial, introduziu o regime de leilões de câmbio com base em cinco categorias para importação tendo como critério a "essencialidade" dos bens. Definia-se claramente segundo os interesses da produção industrial: os insumos e bens de capital integravam as primeiras faixas, enquanto nas últimas categorias arrolavam-se aqueles tidos como supérfluos, assim, englobando os bens de consumo que possuíam similar nacional. Protegia-se, portanto, duplamente a indústria nacional: nos custos, com o câmbio baixo em suas importações e na demanda, com barreira cambial com relação aos concorrentes estrangeiros. Já, as atividades exportadoras passaram a perceber um bônus de Cr$ 5,00 por dólar (café) e de Cr$ 10,00 (demais itens), acima da taxa oficial. As análises convergem quanto à resultante de proporcionar uma transferência de renda do setor exportador para as atividades industriais e voltadas ao mercado doméstico, pois aumentava sua lucratividade em termos relativos.]

Continua na próxima edição

Nenhum comentário: