quarta-feira, 6 de fevereiro de 2013

EUA: a verdadeira guerra por trás do enganoso abismo fiscal de 2012- (2)




A tática é sobrecarregar as economias (os governos, as empresas e as famílias) com dívida, desviar a receita deles para o serviço da dívida, e então executar os devedores, quando faltam meios para pagá-la
MICHAEL HUDSON*
O setor financeiro agiu para sequestrar a economia como um todo, a indústria e a mineração, a infraestrutura pública (via privatizações) e agora até mesmo o sistema educacional: em 2012, a dívida de empréstimos a estudantes nos EUA excedeu a dívida de cartões de crédito em mais de US$ 1 trilhão.
A tática é sobrecarregar as economias (os governos, as empresas e as famílias) com dívida, desviar a receita deles para o serviço da dívida, e então executar os devedores, quando faltam meios para pagá-la. Endividar os governos, fornece aos credores uma alavanca para se apropriar da terra, da infraestrutura pública e de outras propriedades que estão sob domínio público. Endividar as empresas, permite aos credores apossarem-se dos fundos de pensões de seus empregados. E endividar o trabalho, significa que já não é mais necessário contratar fura-greves para atacar organizadores sindicais e grevistas.
TRABALHO
Os trabalhadores tornaram-se tão profundamente endividados com as suas hipotecas habitacionais, cartões de crédito e outras dívidas bancárias, que receiam a greve ou até mesmo receiam queixarem-se das condições de trabalho. Perder o emprego significa não pagar contas mensais, permitindo aos bancos elevar as taxas de juro a níveis que costumavam ser classificados como usura. Para coroar, lobistas dos cartões de crédito bancários reescreveram as leis de falência, com a finalidade de restringir os direitos dos devedores - e os árbitros nomeados para decidir disputas levantadas por devedores e consumidores são sujeitos a veto por parte dos bancos e negócios que são os principais responsáveis por infligir danos.
A oligarquia financeira procura descarregar os impostos que eram pagos pelos bancos e seus principais clientes (setores imobiliário, recursos naturais e monopólios) em cima do trabalho. Dada a necessidade de ganhar a aquiescência do eleitor, esse objetivo é melhor alcançado pela redução de impostos para todos. O caminho mais fácil para isto é afundar o gasto governamental, a começar pela Seguridade Social, o Medicare e o Medicaid. Mas estes são os programas que desfrutam do mais forte apoio eleitoral. Este fato inspirou aquilo que pode ser chamado a Grande Mentira da nossa época: a pretensão de que governos só podem criar moeda para pagar o setor financeiro e que os beneficiários de programas sociais deveriam ser totalmente responsáveis pelo pagamento da Seguridade Social, Medicare e Medicaid, não os ricos. A Grande Mentira é utilizada para reverter o conceito de tributação progressiva, transformando o sistema fiscal numa trama do setor financeiro para impor tributos à economia como um todo.
Lobistas financeiros descobriram rapidamente que o truque mais fácil para descarregar o custo dos programas sociais em cima do trabalho é ocultar novos impostos como user fees [contribuições específicas para um determinado programa governamental],utilizando as receitas para cortar impostos dos 1% da elite. Esta prestidigitação fiscal era o objetivo da Comissão Greenspan de 1983. Ela confundia o povo, levando-o a pensar que os orçamentos governamentais são como os orçamentos familiares, ocultando o fato de que os governos podem financiar seus gastos pela criação da sua própria moeda. Eles não têm de tomar emprestado, ou mesmo tributar (pelo menos, não tributar principalmente os 99%).
A guinada fiscal de Greenspan jogou com o fato de que a maioria das pessoas sente a necessidade de poupar para a sua própria aposentadoria. O engano, cuidadosamente montado e bem subsidiado em ação, é que a Seguridade Social exige um pré-financiamento semelhante – elevando a retenção salarial. O truque é convencer os assalariados de que é justo taxá-los mais para pagar pelos gastos sociais do governo, mas não para pedir também ao setor bancário que pague uma contribuição semelhante, com a finalidade de poupar para a próxima vez que necessite de bailouts para cobrir as suas perdas. Assim, o primeiro engano é tratar apenas a Seguridade Social e os cuidados médicos com contribuições específicas. O segundo é agravar o assunto ao insistir em que tais taxas devem ser pagas muito antecipadamente, como pré-poupança.
Isso é uma paródia de política de tributação progressiva, apenas para obrigar trabalhadores cujos salários são inferiores a (no presente) US$ 105 mil [por ano] a pagarem esta retenção salarial ao FICA (Federal Insurance Contributions Act), isentando ganhos mais elevados, ganhos de capital, rendimento rentista e lucros. A raison d’être de tributar os 99% na Seguridade Social e Medicare é simplesmente evitar tributar a riqueza, pelo ataque ao rendimento dos baixos salários com uma taxa muito mais alta do que aquela dos ricos. Esta não é a forma como foi criado o imposto original sobre o rendimento, nos EUA, no seu início, em 1913. Durante os seus primeiros anos, apenas os mais ricos 1% da população tinham um retorno a registrar. Havia poucas brechas e os ganhos de capital eram tributados à mesma taxa do rendimento ganho.
O programa governamental de seguros do litoral [government’s seashore insurance program], por exemplo, recentemente incorreu num passivo de US$ 1 trilhão para reconstruir as praias e lares privados devastados pelo Furacão Sandy. Por que este seguro, subsidiado a taxas abaixo das comerciais para a minoria rica que vive em suas propriedades neste cenário de alto risco, deve ser tratado como despesa normal, mas não a Seguridade Social? Por que poupar antecipadamente, através de um imposto especial sobre o salário, para pagar pelos programas que beneficiam a população geral, mas não impor uma taxa semelhante para tributar o seguro de casas em frente à praia? Já que falamos nisso, por que não poupar antecipadamente outros US$ 13 trilhões para pagar o próximo bailout de Wall Street, quando a deflação da dívida provocar outra crise para drenar o orçamento?
Mas sobre quem deveríamos cobrar estes impostos? Impor contribuições específicas [user fees] para a reconstrução do litoral exigiria um imposto que caísse principalmente sobre os proprietários ricos de tais propriedades. Tal tributação é só para os assalariados, sobre suas aposentadorias, não para os 1% sobre os seus próprios lares de férias.
Com a não elevação dos impostos sobre a riqueza ou a utilização do banco central para monetizar despesa sobre algo que não seja o bailout de bancos e o subsídio ao setor financeiro, o governo segue uma política pró-credor. O favoritismo fiscal para a riqueza aprofunda o déficit orçamentário, forçando governos a tomarem mais empréstimos. Pagar juros sobre esta dívida desvia a receita que era para ser gasta em bens e serviços. Este arrocho [austerity] fiscal contrai mercados, reduzindo a arrecadação para a beira da inadimplência. Isto permite que possuidores de títulos tratem o governo do mesmo modo como os bancos tratam uma família em bancarrota, forçando o vendedor a liquidar ativos – como se o domínio público fosse as pratas da família, tal como o ex-primeiro-ministro britânico Harold MacMillan caracterizou as liquidações privatizadoras de Margaret Thatcher.
O Fundo Monetário Internacional (FMI), o Banco Central Europeu (BCE) e a burocracia da UE trata governos como bancos tratam proprietários de casas incapazes de pagar sua hipoteca: pelo despejo. À Grécia, por exemplo, disseram-lhe para começar a liquidar os principais locais turísticos, os portos, as ilhas, os direitos de exploração de gás offshore, os sistemas de águas e esgotos, as estradas e outras propriedades.
Governos soberanos são, em princípio, livres de tal pressão. É isso que os faz soberanos. Eles não são obrigados a regularizar dívidas públicas e déficits orçamentários através da liquidação de ativos. Eles não precisam tomar emprestado mais moeda interna; podem criá-la. Este auto-financiamento mantém o patrimônio nacional em mãos públicas ao invés de entregá-lo a compradores privados, ou ter de assumir empréstimos junto a bancos e possuidores de títulos.
PRIVATIZAÇÃO
O setor financeiro promete que a privatização de estradas e portos, sistemas de águas e esgotos, linhas de ônibus e ferrovias (tudo a crédito, naturalmente) tornará tudo mais eficiente e reduzirá os preços cobrados pelos seus serviços. A realidade é que os compradores imporão mecanismos para aumentar a extração de renda sobre a infraestrutura vendida. Os seus custos de equilíbrio incluem os altos salários e bônus que pagam a si próprios, bem como os juros e dividendos aos seus credores e acionistas, gastos com a recompra das suas próprias ações e com lobby político.
A contratação pública de empréstimos cria uma dependência que transfere o planejamento econômico para Wall Street e outros centros financeiros. Quando os eleitores resistem, chega o momento de substituir a democracia por uma oligarquia. Regras "tecnocráticas" substituem as de responsáveis eleitos. Na Europa, as troikas do FMI, BCE e a UE insistem em que todas as dívidas devem ser pagas, mesmo a custo de arrocho [austerity], depressão, desemprego, emigração e bancarrota. Isto é para ser feito sem violência quando possível, mas com práticas de estado policial quando os que se apropriam de bens alheios consideram necessário suprimir a oposição popular.
Financeirizar a economia é descrito como um modo natural de ganhar riqueza – aceitando mais dívida. Mas é difícil pensar um plano de ação mais altamente politizado, moldado como é por regras fiscais que favorecem banqueiros. Também é auto-exterminante, porque quando a dívida pública cresce até o ponto em que investidores ("o mercado") já não acreditam mais que possa ser reembolsada, os credores montam um ataque (a analogia militar é apropriada) "entrando em greve" e não rolando títulos quando eles se vencem. Os preços dos títulos caem, rendendo taxas de juros mais altas, até que os governos concordem em equilibrar o orçamento através de privatizações.
QUANTITATIVE EASING
As três ondas de "Quantitative Easing" (QE) do Federal Reserve desde 2008 mostram como é fácil criar dinheiroMas isto foi proporcionado só aos maiores bancos, não aos proprietários de casas ou indústrias carentes. Os US$ 2 trilhões iniciais em "dinheiro por lixo" ("cash for trash") assumiram a forma do Fed criar nova reserva de crédito bancário em troca de títulos, apoiados por hipotecas, avaliados muito acima dos preços de mercado.
A QE2 proporcionou outros US$ 800 bilhões em 2011-12. Os bancos utilizaram essa injeção para arbitragem de taxa de juro e especulação com taxas de câmbio das divisas do Brasil, Austrália e outras economias com taxas de juro elevadas. Assim, praticamente todo o novo dinheiro do Fed foi para o exterior ao invés de ser emprestado para investimento ou emprego internos.
A dívida do governo dos EUA foi aumentada principalmente para re-inflacionar preços de hipotecas empacotadas pelos bancos e, portanto, os preços do setor imobiliário. Ao invés de aliviar a dívida do setor privado por cancelamentos parciais de hipotecas de acordo com a capacidade de pagar dos proprietários das casas, o Federal Reserve e o Tesouro criaram dinheiro para sustentar os preços das propriedades – para empurrar os balanços dos bancos outra vez acima do patrimônio líquido negativo.
O programa QE3 do Fed, em 2012-13, criou dinheiro para comprar títulos sustentados por hipotecas a cada mês, a fim de proporcionar dinheiro aos bancos para emprestarem a novos compradores de propriedade.
Para a economia como um todo, as dívidas foram mantidas em vigor. Mas os comentaristas focaram só a dívida do governo. Num padrão de dois pesos e duas medidas, eles acusaram déficits orçamentários de inflacionarem salários e preços ao consumidor, mas o objetivo explícito do "Quantitative Easing" era sustentar preços de ativos. Inflacionar preços de ativos a crédito é considerado bom para a economia, apesar de sobrecarregá-la com dívida. Mas a despesa pública na economia "real", elevando níveis de emprego e sustentando as despesas do consumidor, é considerado mau – exceto quando isto é financiado pela tomada de empréstimo pessoal junto aos bancos. De modo que em cada caso o aumento dos lucros dos bancos é considerado o padrão pelo qual a política orçamentária deve ser julgada!
O resultado é uma assimetria política que é o oposto do que a maior parte das épocas considerou razoável ou benéfico para o crescimento econômico. Banqueiros e possuidores de títulos insistem em que o setor público tome dele emprestado, bloqueando o poder do governo para auto-financiar as suas operações – com uma gritante exceção. Essa exceção verifica-se quando os próprios bancos necessitam de criação irrestrita de dinheiro. O Fed proporcionou crédito quase gratuito aos bancos sob a QE2 e o presidente Ben Benanke prometeu continuar esta política até o momento em que a taxa de desemprego caia para 6,5%. A pretensão é de que baixas taxas de juro estimulam o emprego, mas o objetivo mais premente é proporcionar crédito fácil para ressuscitar a tomada de empréstimos e lançar outra vez para cima os preços dos ativos.
DEFLAÇÃO ORÇAMENTAL NO TOPO DA DEFLAÇÃO DA DÍVIDA
Desde 2008, o governo criou dívida para sustentar o setor de Finanças, Seguros e Imobiliário, mais que a produção e o consumo "reais" da economia.
Em contraste com a despesa pública em bens e serviços (ou programas sociais que aumentam a procura do mercado), a maior parte do crédito bancário que levou ao colapso financeiro de 2008 foi criada para financiar a compra de propriedade já existente, ações e títulos já emitidos, ou companhias já existentes. O efeito foi sobrecarregar a economia com hipotecas, títulos e dívida bancária cujos encargos devoram despesas na produção corrente. Os US$ 13 trilhões de subsídios desde 2008 (para permitir aos bancos saírem do patrimônio líquido negativo) trouxeram de volta a questão de saber porque deveriam ser tributados os 99%, para salvar por antecipação a Seguridade Social e o Medicare, mas não [os bancos] para o bailout bancário.
A atual política fiscal encoraja a extração financeira e rentista que se tornou o principal problema econômico da nossa época. Ao invés de alimentar o crescimento econômico, o crédito/débito ameaça absorver o excedente econômico, mergulhando a economia no arrocho, deflação da dívida e patrimônio líquido negativo.
Assim, apesar do fato do sistema financeiro estar quebrado, ele ganhou controle sobre a política pública, com a finalidade de sustentar e mesmo obter favoritismo fiscal para um super-crescimento disfuncional do crédito bancário. Ao contrário do progresso na ciência e tecnologia, esta dívida não faz parte da natureza. É uma construção social. Esta financeirização das oportunidades de extração de renda não reflete uma evolução natural e inevitável "do mercado". Trata-se de uma captura das estruturas de mercado e da política orçamentária. Lobistas dos bancos têm feito campanha, com batalhas laterais nos mass media e nas universidades, para capturar os corações e mentes de eleitores, levando-os a acreditar que o modo mais rápido e mais eficiente de acumular riqueza é através do crédito bancário e da alavancagem de dívida.
* Michael Hudson resumiu suas teorias econômicas no livro "The Bubble and Beyond". Seu último livro é "Finance Capitalism and Its Discontents". Ele é um dos co-autores de "Hopeless: Barack Obama and the Politics of Illusion", publicaso pela AK Press.
http://www.horadopovo.com.br/

Nenhum comentário: