quarta-feira, 17 de outubro de 2012

O azedume de Ayres contra as coalizões e os partidos

Para o presidente do Supremo, coalizões governamentais são “golpe”. Ele decretou que o “sentido das alianças é o da sua transitoriedade”, tentando criminalizar as uniões partidárias
   
Estimado leitor, há coisas na vida que são inevitáveis – e há outras que são muito evitáveis: por exemplo, não faça negócios, ou mesmo um acordo, com o sr. Ayres Britto, que na quinta-feira será, ou foi, aposentado do STF. Segundo ele avisou, "o sentido das alianças é o da sua transitoriedade".

Deixando de lado o pedantismo ridículo do Tartufo, não estaremos enganados ao traduzir tal profundo saber jurídico-filosófico como: alianças devem servir para trair os aliados. Pois, se ninguém trair as alianças, por que elas têm que ser "transitórias"? Por que acabar com a aliança, se os aliados não a traírem?

Por via das dúvidas é melhor nem pensar em adquirir um carro usado de semelhante filósofo. Porém, tudo seria mais ou menos sem importância, exceto para os sócios do sr. Britto, se ele não quisesse atribuir (ou impor) ao país inteiro essa ética peculiaríssima.

GOVERNO


Britto quer criminalizar as coligações – segundo disse, coalizões governamentais são "golpe".
No entanto, ao condenar sem provas (literalmente: "... inferências lógicas são aceitas. (…) … o que justifica a adoção da polêmica teoria do domínio do fato como fundamento jurídico") ele esqueceu de algo.

Não havia coligação formal no primeiro governo Lula – o que, aliás, foi uma limitação tremenda.
Portanto, Britto está verberando contra uma coligação que não existia. A realidade não tem mesmo importância para ele.

Assim, Britto chegou à conclusão de que a acusação de corrupção – pela qual condenou, entre outros, José Dirceu e José Genoíno, sem que houvesse provas contra eles – era realmente falsa, mas que se dane a coerência:

"Claro que o objetivo não era corromper, mas acumular recursos [?!?!]. Me parece [parece?!!] que os autos dão conta, que sob a velha, matreira e renitente inspiração patrimonialista [que diabo é isso?], um projeto de poder foi arquitetado [e daí?]. Não de governo, porque projeto de governo é lícito, é quadrienal [por que só quadrienal?]. Um projeto de poder que, muito mais do que continuidade administrativa, é seca e rasamente continuísmo governamental [ou seja, aos petistas cabe "continuar" os tucanos e estes devem "continuar" os petistas.]. Golpe, portanto, neste conteúdo mais eminente da democracia, que é a república".

Golpe é impor ao povo, como Britto está preconizando, uma política em que ele não votou – e, aliás, votou explicitamente contra. Fora isso, trata-se da tese do fascismo ianque contra o presidente Roosevelt, lá por 1937 ou 1938: o então presidente dos EUA era um golpista porque o povo sempre o elegia. Para não ser golpista, Roosevelt devia entregar o poder a quem não tinha voto e era detestado pelo povo: os representantes dos bancos, que se homiziavam no Partido Republicano.

Portanto, o único poder que não é golpista é aquele que o povo odeia, evidentemente porque existe contra a sua vontade - através, exatamente, de um golpe -, com a função de arrancar o seu couro.

Ayres Britto sabe o que é isso: em 1985, quando tentou ser prefeito de Aracaju, teve sua candidatura impugnada por irregularidades na formação do diretório municipal do PDT, seu partido na época. Cinco anos depois, em 1990, candidatou-se a deputado federal, dessa vez pelo PT. Mas não conseguiu se eleger. Mais 12 anos e ele tentou ser candidato a senador, também pelo PT, mas foi rejeitado pela convenção do seu partido. O sujeito não deve ter pouca raiva do PT, de seus aliados, e dos políticos – isto é, dos que foram mais bem sucedidos do que ele.

Todo mundo sabe, porque é regra no mundo todo - e há muito tempo - que os partidos compõem alianças e coalizões para concorrer às eleições e para governar. Isso é verdade até na Inglaterra, e nem é necessário lembrar o primeiro gabinete Churchill, em que conservadores, trabalhistas e liberais dividiam 150 ministérios... Todo o período anterior, desde 1931, dominado pelos primeiros-ministros Stanley Baldwin e Ramsay MacDonald, também foi um período de coalizão.
Não há nada de muito complicado – e nada de suspeito – nisso. Tal se dá porque os partidos, comumente, representam politicamente partes (por isso é que são partidos) da sociedade: tal ou qual setor, tal ou qual classe ou fração de classe, etc., etc. Qualquer besta quadrada consegue ver porque as coalizões são necessárias para se governar um país – porque, senão, ou o país é ingovernável ou o governo é muito estreito, não conseguindo ser um governo do conjunto do país. Não é exatamente a mesma coisa, mas são coisas muito próximas.
Pois Britto chegou à conclusão de que formar coalizões é crime. Mais ainda, é golpe.

Diz ele que "não faz sentido, à luz da autonomia política de cada partido e da sua identidade inconfundível, ideológica e política, uma aliança formal ad aeternum, porque isso, mais do que a perenização no tempo dessas coalizões, implica em um condicionamento material na hora das votações".

Esse ad aeternum é por conta dele, que ainda não foi avisado que nada na vida é eterno, nem mesmo a estupidez de certos elementos, mas está pregando a esculhambação eterna dos governos progressistas. Porque o "condicionamento" nas votações seria "material" (isto é, em troca de dinheiro) e não porque os partidos estão interessados em tal ou qual projeto, em tal ou qual política? Apenas porque Ayres não consegue ver, como motivação dos outros, algo além do dinheiro. Não arriscaremos os motivos desse tipo de ideia fixa.

Logo, continua ele: "Terminado o período eleitoral, as coligações se desfazem, de direito. E são substituídas por alianças tópicas, pontuais, episódicas, para a aprovação de projetos específicos".

CABEÇA


Não lhe passa pela cabeça – e deve haver um motivo para isso, porque é óbvio – que essas "alianças tópicas, pontuais, episódicas, para a aprovação de projetos específicos" são muito mais sujeitas à corrupção do que uma coligação que expresse uma aliança formal.

Ou será que lhe passa pela cabeça – e tudo isso é palhaçada? Temos, pelo menos, diante de algo tão elementar, direito de suspeitar. Mas, de um modo ou de outro, por que, então, ele é contra uma coligação?

Porque ele, assim como toda a mídia reacionária, mais os tucanos e outros desclassificados, assim o querem – seria a maneira mais fácil de inviabilizar qualquer governo progressista no país. Imaginem a bagunça permanente, a cada votação no Congresso, sem que haja coalizão alguma. E, pior, imagine-se a bagunça quando não houver votação alguma no Congresso. Não haveria projeto de governo ou política para o país que se sustentasse em pé – aliás, nem começariam a ser executados projetos ou políticas.

Vem à nossa mente – e, pior, ao nosso ânimo para terminar essa matéria – que tratamos de forma séria demais essa profícua estupidez que esparge despautérios no STF. Pois é, leitor, nem sempre o humor consegue estar à altura da nossa tradição. Que fazer?

CARLOS LOPES

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