domingo, 30 de setembro de 2012

O que acontece no STF (1)

Durante alguns dias da última semana, conseguimos, finalmente, tempo para assistir trechos do julgamento, no STF, da Ação Penal 470 – isso que a mídia reacionária e sem vergonha chama de “julgamento do mensalão”, como se não fosse necessário provar o que não foi provado.

Sempre achei que eram raridades, no STF, acontecimentos como aquele que descreve, em suas memórias, Paulo Duarte (apesar de sua ligação com a oligarquia cafeeira, ele foi advogado dos revolucionários de 1924): após arguir a ilegalidade da prisão de um menor, filho do coronel João Francisco Pereira de Sousa, Duarte ouviu o voto de um ministro, recém-nomeado para o Supremo por Arthur Bernardes: “Mas a lei já tem sido desobedecida numerosas vezes aqui, pode ser esquecida mais uma vez”.

Evidentemente, não é só essa espécie de ministro que compõe a história do STF: existem os Orozimbo Nonato, Ribeiro da Costa, Vitor Nunes Leal, Evandro Lins e Silva e tantos outros.
Pois bem, leitores, depois de assistir por dois dias o ministro Joaquim Barbosa proferir, à guisa de voto, um discurso francamente partidário (ou anti-partidário, o que, nesse caso, ao modo de Spinoza, é a mesma coisa), chega-se à conclusão de que o prestígio do STF – isto é, sua autoridade moral – está sendo muito mais solapado agora do que foi no governo Arthur Bernardes.

Primeiro: o ministro Barbosa transformou seu voto em um libelo contra o PT em geral. Não é uma acusação a determinados membros, por suas ações reais e concretas, mas ao partido, sempre por razões abstratas, ou seja, que dependem de acreditarmos, ou não, no que diz Barbosa.

Provavelmente porque estamos no centenário do livro único de Augusto dos Anjos, veio à nossa mente os dois versos que encerram o primeiro quarteto de seu mais conhecido soneto: “Somente a Ingratidão - esta pantera -/ Foi tua companheira inseparável!”. Foi apenas um devaneio, sem outras associações ou implicações...

Como o leitor sabe, não somos petistas. Mas, apesar do PT ter protestado muito pouco, não se pode deixar de notar que esse tratamento extrapola os limites do Direito – pelo menos do Direito praticado no Brasil desde 1889 (voos baixos à parte).
Segundo: ficou clara a razão mais fundamental que fez o ministro Barbosa optar pelo “fatiamento” do seu próprio voto, impedindo o revisor, ministro Ricardo Lewandowski, de ler o seu voto na íntegra – o que jamais aconteceu no STF, onde os relatores sempre leram a totalidade, a íntegra de seu voto, para a apreciação dos colegas.

A razão mais imediata para esse “fatiamento” é óbvia: evitar que o ex-ministro José Dirceu fosse o primeiro réu a ser julgado. Como, em relação a Dirceu, não existe fato – prova nem indício – que o envolva com a acusação, o mais provável era a sua absolvição, o que deixaria a própria acusação sem lógica, pois, para o procurador que a redigiu, tudo depende da existência de uma fantástica e interpartidária quadrilha, da qual o ex-ministro seria chefe. Absolvido Dirceu, essa fantasia seria insustentável. Como condenar os outros, se o suposto “chefe” foi absolvido?

Porém, há outra razão mais ampla para o “fatiamento”, na qual a anterior está incluída: diante de uma acusação fragilíssima - onde o próprio acusador declara que a prova do que afirma é que não há provas -, o ministro Joaquim Barbosa optou por refazer a acusação e proferi-la sob a forma de voto, isto é, de sentença. Em vez de juiz, optou por ser auxiliar da acusação.

O ministro, que era tido como um bom promotor, conseguiu refazer a acusação, simplesmente, proferindo um voto em fatias – por acusação e não por réu, apesar de, concretamente, serem estes que estão sendo julgados. Como escreveu um jurista: “Apesar de dizer que realiza o julgamento conforme a metodologia da acusação, o Ministro Joaquim Barbosa alterou a ordem de apresentação desses capítulos sem explicar o critério utilizado. Assim denuncia primeiro quem ele quiser” (Marcos Lima Filho, “O sono do descaso: o STF e as vicissitudes da Ação Penal 470”, HP 24/08/2012).

Naturalmente, a mutatio libelli – em que uma circunstância ou fato novo apareceu - obriga a que a defesa seja ouvida outra vez. Caso contrário, o processo é nulo. Uma nova acusação requer nova defesa ou até novo julgamento. Mas, na AP 470, não é uma circunstância nem um fato novo que apareceu. Por isso, certamente, pode-se discutir se Barbosa está alterando somente a forma da acusação ou também o seu conteúdo – mas, na falta de provas concretas, predominam as considerações abstratas; logo, a forma é essencial à acusação quando não existem provas, o que equivale a dizer que a essência é a forma (ou que, na falta de conteúdo, o que sobrou foi a forma). Portanto, uma alteração na forma da acusação necessita ser exposta ao contraditório, ou seja, à defesa.

Para os leitores que não entenderam a consideração acima (o que, aliás, deve ser o normal nas pessoas normais): há uma diferença entre acusar os réus de constituírem uma quadrilha, com um objetivo e um chefe, e, simplesmente, considerar essas acusações mais gerais como já provadas, concentrando-se nas acusações secundárias, para só depois voltar àquelas. Obviamente, depois de considerar como implicitamente provadas as acusações mais gerais ao condenar quanto às secundárias, é impossível absolver os réus quanto às primeiras – até porque isto anularia as condenações anteriores.

Mas, ao fazer do não-desdobramento do processo um cavalo de batalha, apesar de 35 dos 38 réus terem direito a ser julgados por um tribunal de primeira instância, em suma, ao puxar todos os 38 julgamentos para o STF, e considerá-los como se fossem um julgamento único, o ministro Barbosa impediu qualquer recurso de nulidade – exceto ao próprio STF. Em suma, em relação a 35 réus, passou-se por cima do “princípio de duplo grau de jurisdição” - ou seja, do seu direito de recorrer a outras instâncias da Justiça.

Aqui, um interlúdio: até agora, Barbosa, que é também relator da Ação Penal 536 (o julgamento de Eduardo Azeredo, Marcos Valério e outros acusados de malfeitos em Minas),  não explicou porque nesse outro processo o julgamento foi desdobrado, com 13 dos 15 réus sendo enviados à 1ª instância - e somente dois ao STF. Por que essa diferença de tratamento? Só porque os réus da AP 536 são tucanos?

C.L.


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