sexta-feira, 27 de julho de 2012

Obama: a política do faz de conta

As mais penosas feridas políticas foram auto-infligidas, a começar quando, mesmo antes de sua eleição, correu de volta a Washington para ajudar a resgatar o bailout de Bush e socorrer Wall Street. Essa foi, talvez, a primeira indicação real de que os luminosos discursos de campanha sobre mudanças sistêmicas e geradoras, mascaravam uma psique servil de um homem que ansiava desesperadamente para ser abraçado pelas elites financeiras e políticas
JEFFREY ST. CLAIR
               
              Produtos danificados, mande-os de volta
                Não posso trabalhar, não consigo, me devolva
                Abra a caixa registradora, me dê o troco
                Você prometeu me fazer bem
                Agora refinancie o custo
                Você disse que era barato, mas teu custo é muito alto
               

  (
De "Damaged Goods", Gang of Four)

Barack Obama estava em Brasília, a 19 de março de 2011, quando anunciou com alguma fanfarra a mais recente das guerras de sua jovem Presidência. O bombardeio da Líbia começara, com uma salva de ataques de mísseis de cruzeiro e bombardeios aéreos. Foi uma espécie de intervenção improvisada, largamente orquestrada por Hillary Clinton, Susan Rice e a diva da vingança, Samantha Power, sempre disposta a um bombardeio de saturação em nome dos direitos humanos.

Obama logo elevou o tom, sugerindo que chegara a hora de Kadafi ir embora. O Império perdera a paciência com o coronel. Os sinais da Guerra da Líbia passaram da agourenta "zona de exclusão aérea" para a busca por mudança de regime. Logo, os bombardeios passaram a ter como alvo Kadafi e sua família. Após o assassinato de Osama Bin Laden, em uma invasão de casa com sangue derramado, Kadafi, com razão, receava que Obama também quisesse seu corpo num saco de plástico.

Na ausência de protestos massivos contra a destruição em curso de Trípoli, coube ao Congresso tomar algumas medidas, tentando desafiar a última guerra desautorizada e não provocada. Em um momento anterior na história da República, o arrogante desafio de Obama ao Congresso e à Lei de Poderes de Guerra de 1973, poderia ter provocado uma crise constitucional. Mas estes são dias mais enfadonhos e mais modorrentos, nos quais tais questões vitais se limitaram a uma espécie de oco teatro político. Todos os atores, enfadonhamente, representam os seus papéis, mas todo mundo, até a audiência das TVs de notícias a cabo, percebe que é tudo apenas um show. As guerras vão seguir o seu curso. O Congresso irá financiá-las. O povo não terá voz nesta questão. Como ironizou Oscar Wilde: "O mundo todo é um palco, com um mau elenco".

Aquele velho mole, John Boehner, o lacrimoso filho de um dono de bar, esculpiu uma resolução, exigindo que Obama explicasse suas intenções na Líbia. Foi aprovada, por grande maioria. Uma resolução que competia com esta, do travesso Dennis Kucinich, pedia uma imediata retirada das tropas dos EUA. Esta medida radicalmente saudável conseguiu robustos 148 votos. Obama desprezou ambas as tentativas de botar abaixo a sua abordagem unilateralista quanto a operações militares, dizendo, com um leve toque de surrealismo, que as mais de 14.000 investidas aéreas sobre a Líbia não caracterizavam uma "guerra".

Este é o político moralista Barack Obama? O agente das mudanças? O acadêmico constitucionalista? Escutem essa voz. É petulante e desdenhosa. Alguns dirão que é rabugenta, como o gemido de um estudante talentoso que é apanhado colando numa prova final.

Sim, todos os atores políticos estavam fazendo suas partes. Mas qual o papel exato assumido por Obama?
Obama, o laureado com o Nobel, atribui a si o papel de um Novo Internacionalista, um chefe executivo de um império global, mais disposto a consultar os chefes de Estado da Europa do que os membros do Congresso, até mesmo os de seu próprio partido. De fato, seus cúmplices na surpreendente desventura na Líbia eram David Cameron e Nikolas Sarkozy, uma estranha troika, para dizer o mínimo. Até o próprio secretário de Defesa de Obama, Robert Gates, parece ter, discretamente, se desligado do circulo decisório.

Vocês têm visto o por quê de Obama faz acender uma reação tão virulenta nos mais histriônicos recintos da direita. Ele tem um majestoso senso de sua própria certeza. O presidente parece muitas vezes cativado pela nobreza de suas intenções, oferecendo-se como um tipo de salvador do Império Americano em erosão.

Enquanto vende idealismo imaculado às massas, Obama é, em seu cerne, um pragmático calculista, especialmente quando se trata de avançar em direção à suas próprias ambições. Obama não quer ficar manchado pela derrota. Essa é uma das razões pelas quais desistiu de pressionar por um Estado Palestino, depois que seu enviado ao Oriente Médio, George Mitchell, renunciou, frustrado. É por isso que Obama recusou a insistir em uma opção pública para sua atroz lei de Saúde. É por isso que retirou o apoio aos compromissos com o meio ambiente, à lei que facilitaria a organização sindical nas empresas e ao DREAM Act [projeto de lei que garante aos jovens imigrantes não legalizados, mas que tenham bons resultados escolares, atestados de residência nos EUA].

Obama assumiu a presidência em um momento no qual uma grande parte da nação parecia pronta a confrontar o desagradável fato de que o projeto americano havia descarrilado. Antes de morrer, Norman Mailer lamentava-se de que a cultura americana representava a corrosão de uma má consciência. O país estava se deformando sob o peso psíquico de anos de guerras ilegais, tortura, ganância oficial, excesso de pudor religioso, vigilância governamental, insatisfação sexual suplementada por Viagra, alimentos frágeis obtidos por engenharia genética, empregos sem consistência, filmes decepcionantes, e música corporatizada e infantil, tudo girando em torno de uma montagem de aborrecidas mensagens. Até a chamada comunidade virtual do espaço cibernético virou um solipsismo.

O capitalismo corporativo já não estava mais entregando seus produtos para ninguém. De qualquer forma, não para os 80% de baixo. A economia estava em ruínas, atolada no que parecia uma recessão permanente. O setor fabril fora morto de dentro para fora, com milhões de empregos extraditados e nada além de monótonas posições no setor de serviços em seu lugar. O desemprego crônico de longo prazo mantinha-se em mais de 10%, e, pior, muito pior, na América negra. Aqueles que se aferravam a seus empregos viram os seus salários estagnarem, o valor de suas casas se desvanecia e eram sufocados por impiedosas e crescentes dívidas. Enquanto isso, o capital se movia nos círculos cada vez mais apertados de uma nova e odiosa geração de super-ricos, que sem suor faziam bilhões com um fácil movimento de dinheiro.

Durante o ano de 2008, a melancolia parecia haver se decantado do espírito americano. O país tinha assistido seu governo incutir em seus próprios cidadãos o medo no futuro. A paranoia havia se tornado a indústria mais próspera. A paisagem política era ácida e malévola, o terreno perfeito para brotar o Tea Party e movimentos ainda mais fétidos e venenosos da direita americana. Esses não eram os descendentes ideológicos do fogoso Barry Goldwater. Os do Tea Party não tinham a inocência do Oeste e a ingenuidade de Goldwater. Esses populistas de bairros chiques eram, na maioria, brancos, infelizes e envelhecendo, animados por uma nostalgia lúgubre e sinistra de um suposto Éden preexistente, chamado Governo Reagan, muitos sentindo sua posição na sociedade escorregando inexoravelmente. Eles queriam seu país de volta. Mas, de volta de quem?
Ao invés de culpar as corporações que enviavam a produção para fora do país ou os banqueiros predadores, eles dirigiam seu impulso vingativo contra os negros e os imigrantes, servidores públicos, professores, cientistas e homossexuais. Há algo de profundamente patético nesse fatalismo político e nessa nova espécie de Sabe Nada ["Know Nothing": movimento chauvinista e racista nos EUA, em meados do século XIX]. Mas, deve ser dito, sua ira era, na maior parte, pura. Um estranho consórcio de descontentamento fundido com um senso indefinido de alienação, um desespero ácido com a diminuição das potencialidades da vida na América pós-industrial.
Não, esses não eram idealistas fanáticos ou mesmo utopistas pacifistas. Eram uma espécie alimentada pelo medo, conspirativistas com um apetite nixoniano para a destruição política. Empurrados ao frenesi pelo palavreado doido e cínico de Glenn Beck e Rush Limbaugh, os encontros de massa de adeptos do Tea Party durante o verão de 2009 mostravam sinais de uma psicopatia coletiva, como se a loucura enervante de décadas no confinamento das estufas dos subúrbios americanos tivesse finalmente irrompido, pela primeira vez, para que todos a vissem quantas vezes quisessem pelo Youtube, sob crescente mortificação. Exatamente ali, no National Mall, podia-se ouvir a peroração insípida de Michele Bachmann e o novo passado americano, estas almas perdidas e amargas que sentiam que sua cultura os havia deixado muito para trás.

Com sua disposição solar e sua atitude de Prospero [personagem shakespeareano de "A Tempestade"] para a mistificação, Obama parecia ser capaz de convertê-los ou, ao menos, passar por cima deles. Ao invés disso, lhes deram um chute no traseiro. Como?
Obama é um mestre da política de gesticulação, mas, tende a se encolher em praticamente qualquer batalha mais vigorosa, ainda que os ânimos e o público o apoiem. Seu instinto político o leva a buscar abrigo em cima do muro. Ele é um conciliador por reflexo. Mais para Rodney "daria tudo para todos nos darmos bem" King do que para Reverendo [Martin Luther] King. Mesmo quando confrontado por frágeis encenadores, como John Boehner e Eric Cantor, Obama tende a murchar.

Talvez, Obama jamais tenha se confrontado com tal nível de hostilidade tóxica. Afinal, ele viveu algo como uma vida de charme, a vida de uma criança-estrela, amparado e mimado, encorajado e adulado, desde a Indonésia até Harvard. Obama era a encarnação física e psicológica do novo multiculturalismo: magro, afável, seguro e não ameaçador. Sua ideologia política, vagamente liberal, permanecia opaca na essência. Ao invés de uma agenda abrangente, Obama lançava um medíocre patriotismo belicoso, enquanto proclamava uma América pós-racial e pós-partidária. Ao invés de mudança radical, Obama passou a oferecer, simplesmente, competência administrativa. Isto era interpretado pelos ferozes guerreiros da direita como falta de medida e arrogância e suas homilias vazias apenas serviam para exacerbar sua ira. A direita virulenta já havia definido o perfil de Obama e viram nele o alvo perfeito para seu animus agregado. E, ainda melhor, eles já haviam posto a mira em um inimigo tão inatamente avesso ao conflito que, mesmo quando alvejado por calúnias racistas, não bateria de volta.

Claro, as mais penosas feridas políticas foram auto-infligidas, a começar quando, mesmo antes de sua eleição, correu de volta a Washington para ajudar a resgatar o bailout de Bush e socorrer Wall Street. Essa foi, talvez, a primeira indicação real de que os luminosos discursos de campanha sobre mudanças sistêmicas e geradoras, mascaravam uma psique servil de um homem que ansiava desesperadamente para ser abraçado pelas elites financeiras e políticas. Ao invés de se encontrar com as vítimas dos predadores de Wall Street ou seus defensores, como Elizabeth Warren ou Ralph Nader, Obama abraçou-se ao cérebro confiável do Goldman Sachs e se envolveu em conversas amigáveis com o crème de la crème dos lobistas das corporações em K Street [avenida, em Washington, onde estão lotados os maiores escritórios de lobistas dos EUA]. Ao fim e ao cabo, Obama ajudou a salvar as empresas mais venais e corruptas de Wall Street, concordou em acoitar seus executivos, defendendo-os diante da promotoria para que não pagassem por seus crimes e, como era previsto, foi depois pago com o seu escárnio.

Portanto, a revolução de Obama terminou antes de começar, afogada pelo excessivo desejo do político de provar a si mesmo que era confiável aos grandalhões do establishment. Daí para frente, outras promessas, desde enfrentar as mudanças climáticas até fechar Guantánamo, desde acabar com a tortura até iniciar um sistema de Saúde nacionalizado. Promessas que se comprovaram ainda mais factíveis de serem quebradas.

Tomemos a questão que deu tanta vida à sua campanha: acabar a guerra no Iraque. Semanas depois de assumir, foi chamado por Robert Gates e pelo general David Petreaus - e retornou à Casa Branca magoado e humilhado. A retirada ia acontecer lentamente, mas uma força sinistra ficaria para trás indefinidamente, um contingente letal de cerca de 50 mil, entre operativos da CIA, unidades de forças especiais, esquadrões da morte e grupos de segurança privada sem limites. A guerra aberta de Bush, silenciosamente, se tornava uma guerra virtual; fora da visão, fora do pensamento.

No outono de 2009, até as mãos mais calejadas de Washington já estavam esgotadas de quão profundamente emaranhada a ocupação norte-americana do Afeganistão havia se tornado. Lá, o ritmo selvagem da guerra havia falhado. Muitas promessas quebradas, muitos casamentos bombardeados, muitos assassinatos, muitas crianças mortas e mutiladas, corrupção e covardia demais na satrápia fantoche de Cabul. A maré havia se voltado irrevogavelmente contra os EUA e sua política esquálida. Longe de ser ferido de forma terminal, o Talibã era agora mais forte do que havia sido em qualquer momento anterior, desde 2001. Mas ao invés de capitalizar essa mudança tectônica de sentimento, reduzindo as tropas americanas, Obama, em um complô cínico para provar sua disposição marcial, viajou a West Point e anunciou em um discurso sombrio que estava em conformidade com Petreaus, injetando mais forças no país e desencadeando uma nova campanha de operações letais que iriam localizar e alvejar suspeitos de ser insurgentes, ao longo da cordilheira ao Sul do Afeganistão e do Paquistão.

Naquela noite, Obama falou em uma cadência austera, interrompida com pausas imperiosas, como se para sugerir que ele, ao contrário do instável George W. Bush, estava desencadeando uma guerra no Afeganistão até a vitória. Mas ele sabia muito bem, assim como seu alto comando, incluindo até Stanley McChrystal e David Petreaus, que patentearam a estratégia da contra-insurgência. Não havia nada para vencer no Afeganistão. Naquele distante rincão do mundo, não havia nem padrões para medir o sucesso militar. Era para ser uma guerra punitiva, pura e simplesmente, desenhada para extrair o máximo de sangue possível, uma guerra obscena combatida principalmente por drones com controle remoto, atacando aldeias camponesas em assassinatos sem a menor discrição.

Depois de tudo, o movimento americano pela paz só pôde esbravejar um ultraje impotente. Mas enquanto as guerras de Obama se espalhavam, do Afeganistão ao Iraque, Paquistão, Iêmen, Somália e Líbia, sem levar em conta os trabalhadores católicos, os Quakers e alguns grupos feministas – as restantes luzes morais que ainda piscam na nação –, mesmo estes protestos vagos se dissiparam em lamentos sussurrados, murmúrios balbuciados de desilusão. Seria possível que a esquerda americana tivesse se extinguido, enquanto força política potente, e fosse necessária a eleição de Obama para prová-lo?

E o que restou dos seguidores das palavras de Obama, estes cruzados jovens que o viram iluminado pelo brilho sagrado de sua retórica etérea, e se uniram a ele no trabalho duro de campanha, com uma devoção quase religiosa? O que corria por suas mentes quando a neblina passou, para revelar que Obama estava implementando de forma disfarçada os traçados da política da Era Bush em tudo, desde a detenção de prisioneiros sem acusação formal?

De fato, as ilusões morrem dolorosamente, especialmente quando explodem atingidas por mísseis de cruzeiro.

Publicado originalmente em Counterpunch

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