quarta-feira, 19 de outubro de 2011

Meus amigos líbios


JULIANA MEDEIROS



Falo quase todos os dias (pelo Skype) com a Líbia. Amigos em Trípoli, Sirte, Bani Walid, Sebha, Misrata. Também com muitos refugiados na Tunísia, no país vizinho. Uma rede que se formou, de solidariedade e respeito mútuos, entre líbios e pessoas comuns (muitos jornalistas, como eu) que verdadeiramente queriam saber notícias sobre o que acontecia na Líbia e que iam encontrando pessoas, parentes, amigos, alguém que conhecia alguém.

O motivo? Não há até o momento notícias confiáveis nas grandes redes, a maioria de nós não confia nelas. Nós por força do óbvio, os líbios, por pura indignação (com as mentiras constantes). Não é possível para qualquer rede de televisão em países que estão bombardeando a Líbia fazer uma cobertura minimamente imparcial. Há uma grande rede de notícias do mundo árabe, Al Jazeerah, que até esse momento, vinha sendo o fiel da balança, o grande "intérprete" do mundo árabe para o mundo ocidental. Até que o país "alvo" fosse um inimigo do príncipe do Qatar, dono da rede Al Jazeerah e [de repente] membro da Otan! Restam apenas duas com coberturas feitas in loco: a RT, da Rússia, e a TeleSur, latino-americana. As duas, dando um show de cobertura desde o início dos conflitos na Líbia.

Um desses amigos esta na foto acima. Mohamed Magam. Um estudante de ciência política da Universidade de Trípoli, que pegou em armas para defender sua cidade e morreu, não vítima de um combate direto com os ditos "rebeldes", mas por via aérea, atingido por um míssil da OTAN.

Depois de passar meses conversando com esse garoto, de 23 anos, um líder estudantil, empolgado com a esperança, aliás, com a certeza na vitória de seu país, contra o que ele chamou de "conspiração", ou uma "tentativa de manchar a imagem" da vida que tinham por lá, foi inevitável uma crise de lágrimas quando soube de sua morte.

É inacreditável que homens como Obama ou Sarkozy durmam tranquilos em seus travesseiros com tantas mortes sob sua responsabilidade. Bush configurou-se em Obama, personagens diferentes, para países diferentes, mas uma mesma história de morte e apropriação de recursos que alimentam sistemas financeiros falidos e retroalimentam a indústria bélica.

Percebo o quanto é surreal que a informação neste mundo globalizado nos permita vermos um filme em nosso sofá, sabendo que alguém do outro lado, passa a noite em claro em meio a bombas de verdade. E, sim, eu sei que Gaza já vive isso há décadas, hostilizada quase que diariamente por soldados das forças especiais israelenses.

Mas a Líbia não vivia uma guerra, viviam no país reconhecido pela ONU em 2007 como o maior IDH de seu continente, reconhecido como "um dos maiores combatentes do terrorismo", um lugar sem impostos, aluguéis, com TODO o aparelho de estado público e gratuito, com água abundante no meio do deserto do Saara, de maioria islâmica (sem embates religiosos, como acontece em outros países do mundo árabe) e bem, creio que já é possível perceber que essa história de "povo querendo ser salvo de um ditador sanguinário" já demonstrou ser uma das maiores furadas da história contemporânea. Um engodo, que resultou em um país arrasado e agora alvo de uma disputa de butim. Jihadistas, membros da Al Qaeda (ironicamente alçados a "parceiros" dos países da coalizão), mercenários, líbios opositores, tropas britânicas e do Qatar e, claro, Sarkozy e Obama que já sabem qual será sua cota na partilha.

Hoje falei com a viúva inconsolável de um dos amigos mortos na Líbia. Um bem humorado professor universitário, orientador de mestrados na área de pesquisas em biologia. Médico veterinário e biólogo, passou cerca de oito anos se especializando no Brasil, na USP e na UnB, entre os anos 80 e 90.

Minha amiga sequer sai de casa há meses. Sem o marido, tenta proteger os dois filhos, ainda menores de 14 anos. Quando ele ainda estava vivo, depois de iniciada a invasão estrangeira de fato, sua família se limitou a permanecer, por semanas, totalmente incomunicável, em seu apartamento, esperando que não fossem atingidos pela artilharia antiaérea dos "rebeldes" que mirava aleatoriamente os prédios residenciais de Trípoli.

Depois de sua morte e de passar alguns dias tentando sepultar o companheiro, só lhe restou manter-se no apartamento escondida com seus filhos e apenas esperar que novos ventos tragam a tranquilidade necessária para realizar as cerimônias islâmicas de despedida do seu ente querido ou simplesmente, tocar a vida em frente.


Soldados do CNT (o autoproclamado "Conselho Nacional de Transição") que rondam Trípoli, em sua maioria não são líbios, mas mercenários contratados pela Otan, qatarianos e soldados das forças especiais britânicas. Ela relatou ainda que milicianos do CNT tentam identificar ex-funcionários do governo anterior para interrogatórios e execuções sumárias. Tudo isso, com o silêncio das "Nações Unidas". Aliás, com a garantia de assento no Conselho de Segurança da ONU para os assassinos!

Que povo é esse que resiste há meses à tão "esperada salvação"? É impressionante o discurso construído para legitimar o genocídio das forças estrangeiras sobre a Líbia! O único resultado visível da "ação humanitária" da OTAN nesse país africano, são corpos espalhados pelas ruas, hospitais em colapso e um medo incessante.

Quando estive na Tunísia, fronteira com a Líbia, falei pela última vez com Mohamed pelo Skype, avisando que pretendíamos chegar logo a Trípoli e que poderíamos conversar pessoalmente. A Otan tinha iniciado o bombardeio dos postos de fronteira, o início ao cerco, mas nós não tínhamos ainda a dimensão do que estava por vir. Quando comentei que era chato aquele "atraso", ele me respondeu com um smile ao final, "don´t worry, you will pass the border soon". Tenho certeza agora de que nós atravessamos, cada um à sua maneira, essa fronteira.

 

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