sábado, 2 de julho de 2011

A Líbia é o nosso futuro

Luís Britto Garcia*

1. Nenhum homem é uma ilha; a morte de qualquer pessoa me afeta, pregava John Donne. Nenhum país está fora do planeta: o genocídio cometido contra um povo assassina-me. Tudo o que acontece na Líbia fere-me, vos prejudica, nos afeta.

2. Falemos como homens e não como chacais ou monopólios midiáticos. A Líbia não é bombardeada para proteger a sua população civil. Nenhum povo é protegido lançando-lhe explosivos nem despedaçando-o com 4,3 mil ataques “humanitários” durante mais de cem dias. A Líbia é incinerada para lhe roubarem seu petróleo, suas reservas internacionais, suas águas subterrâneas. Se o latrocínio triunfa, todo país com seus recursos será saqueado. Não pergunte sobre quem caem as bombas: cairão sobre você.

3. Encarceraram os comunistas; nada poderia importar-me menos porque não sou comunista, ironizava Bertold Brecht. O Conselho de Segurança da ONU aprova uma zona de “exclusão aérea” a favor dos secesionistas líbios, mas permite um bombardeio infernal; a China e a Rússia abstêm-se de vetar a medida porque como não são líbios nada poderia importar-lhes menos. De imediato os Estados Unidos ameaçam a China com a declaração de uma “moratória técnica” da sua impagável dívida externa e agridem o Paquistão. A China replica que “toda nova ingerência dos Estados Unidos no Paquistão será interpretada como ato não amistoso” e arma o país islâmico com cinquenta caças JF-17. Nenhum povo está fora da humanidade: se você não veta a agressão contra outro, a desencadeia contra você.

4. Conta Tolstói que um urso ataca dois camponeses: um sobe a uma árvore, cedendo ao outro o privilégio de defender-se só. Este vence e conta que as últimas palavras da fera foram: “Quem te abandona não é teu amigo”. A Liga Árabe, a União Africana, a OPEP trepam na árvore da indecisão esperando a vez de serem esquartejadas. Ao abandonar as vítimas você se abandona.

5. Como nos tempos em que o fascismo assaltava a África, hoje a Itália, Alemanha, Inglaterra, França e outros pistoleiros da Otan sacrificam armamentos e efetivos numa guerra que só favorecerá os Estados Unidos. Impedido pelo seu Congresso de investir abertamente fundos no conflito, Obama queixa-se dos seus cúmplices da Otan porque sacrificam à despesa militar menos de 2% dos seus PIB e ordena-lhes que imolem pelo menos 5% (“El futuro de la Otan”, Editorial El País, 15/06/2011). São instruções inaplicáveis quando o protesto social, a crise financeira, a dívida pública impagável e o próprio gasto armamentista minam os governos do G7. Perante tais exigências, a Itália opta por não participar mais na associação criminosa. A Agência Internacional autoriza a gastar das reservas que não tem 60 milhões de barris de petróleo em dois meses. Os Estados Unidos desbaratam em 2010 uma despesa militar de 698 bilhões de dólares, 43% do total mundial de 1,6 trilhão de dólares (Confirmado.net 17/06/2011). Assim se dilapidam em forma de morte os recursos que deveriam salvar a vida. Se montam guerras para devorar o outro, as guerras te devorarão.

6. Como na época de Ali Babá e os quarenta ladrões, os banqueiros internacionais que tão benevolamente receberam 270 bilhões de dólares em depósitos e reservas da Líbia assaltam o botim e estudam repassá-lo àqueles que tentam assassinar os legítimos donos. Também criam para os monárquicos de Benghazi um banco central e uma divisa secessionista. São os mesmos financistas cujo latrocínio custa à humanidade o atual colapso econômico: não indague a quem roubam os banqueiros: desfalcam você.

7. No estilo das blitzkrieg nazis, o presidente dos Estados Unidos inicia guerra sem a autorização dos seus legisladores e prolonga-as ignorando o Congresso, onde dez deputados denunciam o presidente e o secretário da Defesa Robert Gates e vetam os fundos para a agressão contra a Líbia tachando-a de ilegal e inconstitucional. Não averigue se você deve impor a tiros a democracia a outros povos: acabe antes com os vestígios dela que restavam no seu próprio país.

8. Cada homem é peça do continente, parte do todo, insiste John Donne. Os inimigos do homem não cessam de fragmentá-lo para destruí-lo melhor. Os impérios, que são quebra-cabeças instáveis de peças juntadas à força, no exterior fomentam ou inventam o conflito de civilização contra civilização, o rancor do iraniano contra o curdo, do xiita contra o sunita, do hindu contra o muçulmano, do sérvio contra o croata, do descendente contra o ascendente, do ancestral contra o menos ancestral, do líbio contra o líbio, do venezuelano contra o venezuelano. De cada variante cultural pretendem fazer um paizinho e de cada paizinho um protetorado. Quem nos separa nos faz em pedaços, quem me divide me mutila. Não indague como despedaçam a Líbia: esquartejam você.

9. Toda pilhagem começa com a promessa de golpe fácil e atola-se na carnificina insolúvel. As guerras do Afeganistão, Iraque, Líbia, Iêmen e a agressão contra o Paquistão começam com passeios triunfais, espatifam-se em holocaustos catastróficos e nenhuma conclui nem se decide. A resistência dos seus povos retarda a imolação da qual não te livrarão nem vetos omitidos nem organizações abstencionistas nem banqueiros carteiristas nem Congressos nulificados. Não pergunte porque são assassinados os patriotas líbios: estão morrendo por você.

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