sábado, 9 de julho de 2011

A dominância financeira

Estávamos, após ler o Relatório de Política Fiscal do Banco Central - e conhecer o relato da senadora Vanessa Grazziotin (PcdoB-AM) sobre a justa preocupação manifestada pela presidente Dilma (“quando começaremos uma escala inversa, de diminuição das taxas de juros?”) - preparando um artigo sobre a hedionda sangria que o Brasil está sendo vítima por conta diretamente dos juros, o que está levando, também, a outras sangrias. Macbeth, depois de assassinar o rei Duncan, disse algo como “quem diria que o velho tinha tanto sangue...” - como a vítima da peça de Shakespeare, nosso país parece sempre ter mais sangue para ser tomado pelos vampiros externos e internos que constituem o chamado mercado financeiro, multinacionais, etc.  Mas nada na vida é infinito, com exceção, de acordo com Einstein, talvez do universo – e, com certeza, da estupidez de certos indivíduos.

Nos 12 meses encerrados em maio, passou-se, em juros, para bancos e demais especuladores, a colossal, quase inimaginável quantia de R$ 219 bilhões e 768 milhões. Não se trata, bem entendido, de nenhuma “rolagem”, na qual se paga títulos com outros títulos. Não. Estamos falando de dinheiro – e dinheiro público, por conta das taxas estabelecidas pelo Banco Central.
Desde janeiro até maio, foram passados R$ 100 bilhões e 760 milhões – em cinco meses, portanto, ultrapassamos os R$ 100 bilhões de dinheiro do governo para os bancos. Um aumento de R$ 24 bilhões e 399 milhões em relação ao ano passado, quando, no mesmo período, o gasto com juros havia já atingido R$ 76 bilhões e 361 milhões.
Esses números estão no Relatório do BC.

Perante tal escândalo, o sr. Mantega diz que o problema são os “excessivos” gastos de custeio – isto é, as verbas para manter hospitais, universidades, etc., em suma, o atendimento à população. Ressalte-se que, no mesmo período, segundo a execução orçamentária do Tesouro, foram gastos com Saúde R$ 24 bilhões e 845 milhões, menos de 1/4 do que se gastou com juros, e, com Educação, R$ 13 bilhões e 740 milhões, portanto, sete vezes menos (cf. Senado Federal, Portal Orçamento/SIGA BRASIL).

Note-se que todos os investimentos orçamentários liberados (ou seja, efetivamente pagos) pelo governo federal nesse mesmo tempo montaram a apenas R$ 1 bilhão e 807 milhões – mais de 55 vezes menos do que o gasto com juros. Daqui, vê-se quão verdadeira é a teoria manteguiana de que o corte no custeio era para aumentar os investimentos...

Pareceria que nada mais pode exceder esse descalabro. Infelizmente, há mais. Os governos estaduais, nesses cinco meses, foram confiscados em R$ 17 bilhões e 611 milhões, incorporados ao famigerado “superávit primário” - a reserva para pagar juros.  Apesar disso, esses governos pagaram R$ 22 bilhões e 263 milhões em juros.

O mesmo aconteceu com as Prefeituras: forneceram R$ 1 bilhão e 436 milhões para o “superávit primário”, e pagaram R$ 4 bilhões e 432 milhões em juros.

Que os defensores desse crime – perto do qual o de Macbeth parece obra humanística – postulem que o grande risco para o Brasil são os aumentos nos salários, é matéria que foge à discussão política ou ideológica propriamente dita. Mais adequadamente, é caso para o Código Penal.

Estávamos, então, preparando um artigo sobre tal assunto. As tabelas desta página foram compostas para esse trabalho. Porém, hoje em dia, no Brasil, a economia transformou-se numa guerra em várias, inúmeras frentes. Portanto, quando lemos o artigo desta página, de Amir Khair, publicado pela Agência Carta Maior, quase promovemos uma queima de fogos. Khair, economista que foi secretário de Finanças na primeira administração do PT na capital paulista, aborda o mesmo tema – e com a sua habitual clareza, recusando-se a transformar assuntos econômicos num volapuque, como fazem, em geral, aqueles que querem enganar o próximo.
C.L.
AMIR KKAIR
 
Se existe um problema grave na economia brasileira, ela se chama taxa de juros. Existem duas taxas de juros distintas no Brasil. A Selic, que é a taxa básica de juros definida pelo governo, e a taxa de juros cobrada pelos bancos aos seus clientes (empresas e pessoas).

A diferença entre elas é denominada de spread bancário, considerado o Brasil, em vários estudos internacionais, como tendo o spread mais elevado do mundo há muitos anos. É a principal fonte do lucro dos bancos, sem a interferência do governo, que têm os instrumentos legais para regular esses exageros, o que evidencia a gravidade do problema e sua subserviência ao mercado financeiro.

A Selic é a mais alta do mundo, também há vários anos. Assim, essas duas taxas apresentam a maior aberração e trava macroeconômica, que tem impedido que o Brasil avance na economia de forma saudável, pois as taxas de juros elevam em excesso as despesas do governo, das empresas e dos consumidores e, o que é mais grave, com o apoio da maioria dos economistas, que têm espaço na mídia, defendendo que as taxas de juros têm que ser elevadas para controlar a inflação.

Não é de se estranhar isso, pois a mídia depende de verbas publicitárias, que vêm do mercado financeiro e os bancos são importantes financiadores de políticos nas campanhas eleitorais, obtendo força nas decisões políticas de seus interesses. Eles têm equipes de economistas em seus quadros e de consultorias para defenderem posições que lhes interessam. O resultado é que são raras as oportunidades de expressão de posições divergentes em relação ao que poderia chamar de pensamento único na economia.

O fato é que o Brasil convive com essas taxas de juros, quando países de economia semelhante à nossa têm taxas muito inferiores e com inflação igual ou menor que a nossa.

A principal explicação para essas anomalias é a submissão do governo ao mercado financeiro. A presidente Dilma começou bem, dando a diretriz de redução da Selic até 2014, para 2%, excluída a inflação. É uma meta tímida e demorada, que não vai ajudar a resolver logo essa questão. A meta de 2% é elevada em relação aos níveis dos países emergentes que estão negativas em 0,5% atualmente. Sobre o spread o governo não se pronunciou determinando limites, tendo poder para isso.

O Brasil tem taxa básica de juros real de 6,8%, mais de quatro vezes (!) o segundo colocado em pior posição, que é o Chile com 1,5%. A média dos 40 países da amostra deu negativa de 0,9%.

A Selic é definida pelos diretores do Banco Central, em reuniões a cada seis semanas, no Comitê de Política Monetária (Copom). O Banco Central (BC) consulta semanalmente as instituições do mercado financeiro, divulgando-as no boletim Focus, para saber que estimativas fazem essas instituições sobre a inflação para o ano em curso, os próximos doze meses e para o ano seguinte.

Essas instituições informam a decisão que esperam seja tomada pelo Copom em relação à Selic nas próximas reuniões até o final do ano seguinte.

O Focus é apresentado pela mídia como sendo as previsões do mercado para a inflação, Selic, crescimento econômico, taxa de câmbio e produção industrial. Tem a finalidade de orientar as expectativas dos agentes econômicos. Mas orientar expectativas é de suma importância e, para isso, pressupõe a escolha de uma amostra representativa do mercado. No caso o mercado financeiro representa apenas 7% (!) do mercado, e tem interesse na elevação da Selic.

O problema é que a mídia divulga essas expectativas como sendo do mercado, e com isso acaba orientando os agentes econômicos (empresas e pessoas) em suas decisões sobre inflação, crescimento, etc.

Várias vezes o BC foi questionado por usar uma amostra não representativa das previsões do mercado, mas não mudou, o que é estranho e danoso. Faz o contrário do que é feito internacionalmente pelos bancos centrais e governos que se preocupam com a credibilidade e orientação adequada das expectativas dos agentes econômicos.
Fato mais grave é que o Copom acaba definindo a Selic, que é indicada pelo mercado financeiro em praticamente 100% das vezes, ou seja, só serve para referendar uma Selic elevada. Quanto mais elevada, melhor, pois sai daí parcela importante dos lucros obtidos com prejuízos equivalentes do único devedor da Selic, o governo federal.

Esse prejuízo em última instância sai do bolso do contribuinte através dos tributos que paga.

Esse prejuízo atingiu nos últimos doze meses até maio, R$ 220 bilhões ou 5,7% do PIB, quando no mundo esse custo é de 1,8% do PIB. A perda de 3,9% do PIB (5,7 menos 1,8) é injustificável, pois é possível controlar a inflação nos demais países com taxas básicas de juros bem inferiores às aqui aplicadas.

Esse prejuízo será ainda maior até o final deste e do próximo ano, caso o Copom continue seguindo as previsões da Selic do mercado financeiro em suas reuniões. A dívida do setor público irá continuar subindo pelos juros crescentes e pelas injustificadas transferências por parte do Tesouro de novos R$ 55 bilhões ao BNDES.

Esse valor foi obtido com a emissão de novos títulos que pagam juros Selic.

Assim, não sobram recursos para o governo expandir suas atividades nas áreas estratégicas da saúde, educação, assistência social, previdência, segurança pública, habitação, investimentos em equipamentos para a expansão dessas atividades e para a infraestrutura do País.

A gravidade dessa situação é que ela vem de longa data, e já foi pior, pois após o Plano Real, as despesas com juros atingiram a média de 8,6% do PIB no governo FHC (1995 a 2002) e de 6,2% no governo Lula (2003 a 2010). A média dos 16 anos (1995 a 2010) foi de 7,8% (!) Em valores atualizados pelo IPCA os juros atingiram nesses 16 anos R$ 3,7 trilhões (!) Caso não tivesse trilhado esse caminho suicida, o País seria outro, com situação fiscal equilibrada, e recursos suficientes para reduzir o elevado déficit social e de infraestrutura existente.

A consequência dessa política monetária, com a benção do governo, é que ele fica obrigado a obter resultados primários (receitas menos despesas, exclusive juros) elevados para pagar apenas parte dos juros, resultando em déficits fiscais, que obrigam a emitir mais títulos de dívida. É uma bola de neve crescente para as finanças públicas, que continuará a rolar ladeira abaixo caso não caia rapidamente a Selic.

AGRAVANTES DA SELIC COM A CRISE DE 2008

Com a crise de 2008, os países desenvolvidos emitiram vários trilhões de dólares, euros e ienes para socorrer seus bancos que estavam em situação falimentar e a maior parte dessas emissões com taxas de juros próximas a zero foram em busca de aplicações em outros países que ofertavam taxas de juros mais elevadas, e o Brasil é o preferido dessa dinheirama que vem para cá, lucrando e repatriando esses lucros, que saem do Tesouro Nacional, ou seja, dos contribuintes brasileiros que pagam tributos ao governo federal.

Assim, o BC dá de presente aos capitais internacionais quantias elevadas de recursos, que irão faltar para serem usados no País.

Existem outros danos causados pelo BC, pois é ele que detém as reservas internacionais em dólares do País, que já ultrapassaram a US$ 333 bilhões em maio e continuam subindo com velocidade. Essas reservas custam aos cofres públicos juros equivalentes à Selic e são aplicadas, especialmente, em títulos do Tesouro americano que não rendem praticamente nada e são penalizadas pela queda do dólar face ao real durante todo o período de existência das reservas.

Em 2010 o BC causou um rombo de R$ 50 bilhões com essa política suicida e, neste ano como as reservas cresceram muito mais do que em 2010, e a Selic média será mais elevada do que em 2010, estima-se que o rombo causado pelo carregamento dessas reservas poderá ultrapassar R$ 70 bilhões (!). Se continuar elevando essas reservas, sem reduzir a Selic no próximo ano, como prevê o mercado financeiro, esse rombo em 2012 poderá chegar a R$ 90 bilhões (!).

Mas os danos causados por essa Selic não param por aí. Como dissemos, a dinheirama espalhada pelo mundo pelos países desenvolvidos são atraídos para o Brasil devido à Selic elevada, sem correr riscos e podendo repatriar os lucros rapidamente (alta liquidez). O ganho desses capitais é ainda maior do que só com os juros. Em junho de 2010, cada dólar valia R$ 1,81 e agora R$ 1,55 (dia 4/7). Ganham, pois duplamente: nos juros e na valorização do real.

Com a valorização do real, que não para, as importações ficaram mais baratas e substituíram produtos fabricados no País, gerando desempregos aqui e criando empregos lá fora. Os consumidores saem ganhando nessa situação por terem mais escolhas nos produtos, que apresentam qualidade similar ao produzido aqui e com preços inferiores.

As exportações foram, também, prejudicadas, pois ficaram mais caros os produtos fabricados aqui no confronto com os produtos similares de outros países. Mas é importante considerar se o desemprego gerado não irá causar redução do consumo. Já criou rombos nas contas externas desde 2008.

Diante dessas realidades não resta ao governo alternativa se não enfrentar a dominância financeira, que vem travando o desenvolvimento econômico e social do País. Não se trata de problema técnico ou econômico, mas de decisão política e, para isso, é necessário afrontar os interesses impostos pelo mercado financeiro. O governo até agora não demonstrou disposição nesse sentido.
HP

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