quinta-feira, 30 de junho de 2011

A injusta e impagável dívida dos Estados com o governo federal

Depois de sacrificarem os serviços públicos e qualquer projeto importante durante tantos anos, repassando parte da receita ao governo federal, os Estados estão 92,91% mais endividados com o Tesouro Nacional

O governo, segundo foi anunciado em Brasília, concordou com a reivindicação dos governadores de mudar o índice de correção monetária da dívida dos Estados com o Tesouro Nacional. O atual, o IGP-DI, nos últimos 10 anos aumentou mais do que a inflação oficial, medida pelo IPCA, tornando próximas de inviáveis as administrações estaduais. Existem, ainda, divergências sobre qual o novo índice, com o Ministério da Fazenda resistindo à proposta dos governadores – que é a mais lógica, a de usar o próprio IPCA.

Segundo o governador Eduardo Campos, os Estados, com o IGP-DI, pagam juros de até 18,5% ao ano sobre a dívida com o governo federal (a extorsiva Selic, do BC, maior taxa de juros básica do mundo, está 6,25 pontos percentuais abaixo: 12,25%).  Em maio, a inflação de 12 meses pelo IPCA estava em 6,55%, enquanto o IGP-DI do mesmo período foi 9,14%. Portanto, muito justo a mudança do índice.

No entanto, diante da situação, em verdade calamitosa, nos parece bastante insuficiente essa mudança – mais ainda se considerarmos que essa dívida não foi criada, nem inflada, pelos Estados (ou pelos municípios, que têm o mesmo problema).

A dívida total dos Estados aumentou 97,7% desde 2001. Nos deteremos aqui, não sobre a dívida total, mas sobre, exatamente, aquela com o governo federal – excluindo, portanto, as dívidas com bancos públicos e privados - pois é nessa parcela que está o problema (ela é 90% da dívida dos Estados) e onde pode estar a solução (é sobre ela que o governo federal pode agir).

A NAU DOS INSENSATOS

Como se explica que depois de 13 anos – desde a “federalização” das dívidas estaduais, em 1998 – com os Estados destinando 11,5% (Roraima, Acre, Amazonas, Ceará e Pernambuco) até 15% (Goiás, Alagoas, Mato Grosso do Sul, Mato Grosso, Rondônia, Pará) ao pagamento dessa dívida com o governo federal, ela tenha, nos últimos 10 anos, aumentado de R$ 200.408.290.000,41 para R$ 386.604.389.556,09 (386 bilhões, 604 milhões, 389 mil, 556 reais e 9 centavos)?

Um aumento de R$ 186 bilhões em 10 anos, pagando 11,5%, ou 13%, ou 15% da receita! Poucas vezes se viu tanto sacrifício – e tão inútil.

Houve uma minoria de Estados em que essa dívida diminuiu. Pode-se imaginar a que preço - social, humano - a dívida do Piauí, por exemplo, diminuiu. Porém, nem ao menos nesses Estados ela deixou de ser um fardo insuportável, esmagando a ação estadual no atendimento à população.

Mas a regra, na maioria dos Estados, foi o aumento da dívida. Depois de sacrificarem os serviços públicos e qualquer projeto importante durante tantos anos, repassando parte da receita ao governo federal, os Estados, em seu conjunto, estão 92,91% mais endividados com o Tesouro.

O problema foram – e são – as condições impostas pelo governo tucano em 1997 (Mato Grosso) e 1998 (aos outros Estados, com exceção do Amapá e Tocantins, que não renegociaram suas dívidas), no intitulado Programa de Apoio à Reestruturação e ao Ajuste Fiscal de Estados (Lei nº 9496/97).

Nossos leitores mais veteranos conhecem a questão, pois, na época, expusemos a sua natureza, denunciando essas condições, e apontando que só poderiam conduzir a uma catástrofe. Com efeito.

Sucintamente: em 1998, os Estados estavam quebrados – não por qualquer erro ou pecado que tivessem cometido, mas porque o governo federal catapultara as taxas de juros para o espaço sideral, e, ao mesmo tempo, achatara as receitas estaduais, com a Lei Kandir e o famigerado Fundo de Estabilização Fiscal (FEF).

As dívidas dos Estados com os bancos tornaram-se impagáveis. Naturalmente, não seria Fernando Henrique que abaixaria os juros - ou obrigaria os bancos a readequarem as condições das dívidas estaduais. Pelo contrário, aproveitou a situação para chantagear os Estados, obrigando-os a privatizar bens públicos e confiscando suas receitas para o criminoso “superávit primário” - ou seja, também para repassá-las aos bancos.

Esse era o objetivo da “renegociação” das dívidas estaduais, com sua “federalização”, imposta pelo “programa de ajuste”. Aqui, utilizaremos a descrição – porque clara e sintética – de um professor de economia:

“O programa prevê o financiamento do conjunto das dívidas estaduais de natureza financeira (…) com prazo de refinanciamento de 30 anos. Os juros devidos variam de 6 a 7,5% ao ano, com correção mensal pelo IGP-DI e amortização mensal pela Tabela Price.

A garantia ao refinanciamento é dada pelas receitas próprias e pelas transferências do Fundo de Participação do Estado (FPE). O governo federal, em caso de inadimplência, é autorizado a sacar as importâncias exigidas para atender aos acordos firmados diretamente das contas bancárias centralizadoras da arrecadação dos estados” (Francisco Luiz C. Lopreato, “O endividamento dos governos estaduais nos anos 90”, Economia e Sociedade, Campinas, dez. 2000, pág. 146).

De passagem, uma observação: a amortização pela Tabela Price é manifestamente ilegal no Brasil desde 1933 (decreto 22.626, assinado pelo presidente Getúlio Vargas), o que já foi reconhecido por vários tribunais, inclusive pelo STF (súmulas 121 e 596) e pelo STJ (súmula 93). O motivo é que ela constitui “capitalização de juros”, ou seja, cobrança de juros sobre juros - o que, no Brasil, é crime que tem o nome de “anatocismo”.

Porém, esses detalhes – o que é legal e o que não é – jamais inibiram Fernando Henrique. Todo o seu período no Planalto é demonstração suficiente desse traço de personalidade.

Mas, continuemos - porque há coisa muito pior nessa história.
Para “renegociá-la”, os Estados foram obrigados a pagar à vista nada menos do que 1/5 da sua dívida. Uma imposição mais do que leonina, lembrando mais um tiranossauro do que o pobre coitado de um leão.

Mas, como os Estados poderiam pagar à vista 1/5 da sua dívida, se estavam quebrados pelos juros do Banco Central? À maneira de Margaret Thatcher, a beldade favorita dos jurássicos:

“A incidência de taxas de juros mais baixas [N. HP: nada menos do que 6% a 7,5% ao ano + IGP-DI] está condicionada ao pagamento de 20% da dívida à vista. Os recursos usados no pagamento desta parcela da dívida originam-se fundamentalmente da venda de patrimônio estadual. (…) os estados devem transferir à União ativos privatizáveis” (idem, pág. 147, grifo nosso).

Chamamos a atenção do leitor, decerto algo já engulhado, para o que vem a seguir:

“O valor apurado na venda desses ativos serve para quitar o débito registrado (...). Se houver diferença, os estados são obrigados a quitar o saldo à vista ou entregar novos bens, aceitos pelo BNDES, para privatização. Caso não ocorram essas alternativas, os estados são penalizados. O saldo (…) é incorporado ao refinanciamento, mas a parcela correspondente a um múltiplo dessa diferença (cinco vezes, no caso de São Paulo) é refinanciada pelo custo médio de captação da dívida mobiliária interna do governo federal e não pelas condições de juros e correção monetária estabelecidas nos acordos” (idem, ibidem, grifo nosso).

Repetindo: a parcela à vista que não fosse coberta pela privatização (com aquelas maravilhosas avaliações de preço que se faziam dos bens públicos) seria multiplicada - por cinco, no caso de SP - e o Estado pagaria sobre ela a extorsiva taxa Selic, do Banco Central.

No entanto, essa bárbara pilhagem do patrimônio e do erário dos Estados não era tudo. Foi exigida submissão absoluta, completa e totalitária – bem característica dos democratas ao estilo Fernando Henrique - dos Estados ao setor financeiro externo, mesmo depois de já despossuídos de seus bens:

“... cada estado é forçado a obter superávit primário e operacional capaz de garantir o pagamento das amortizações exigidas na redução da dívida. O compromisso de cada unidade, consequentemente, é gerar um superávit operacional superior ao valor de comprometimento da receita líquida real mensal e compatível com o critério de longo prazo” (idem, pág. 150).

O que isso significava, em termos práticos, pode ser melhor compreendido por um exemplo:

“Pode-se ter ideia da magnitude do esforço fiscal caso se considere (...) a situação de um estado que, obrigado a dedicar 15% da receita líquida ao pagamento da dívida, gaste 25% com despesas de custeio e investimento, 60% com o pagamento de pessoal da ativa e tenha compromisso com pensionistas e inativos da ordem de 35% da folha de pessoal, isto é, 21% da receita líquida. O estado, nesse caso, é obrigado a gerar um superávit primário equivalente a 36% da receita líquida do Tesouro para atender ao compromisso com a dívida e os inativos e pensionistas, muito acima do que se tem observado nas estatísticas disponíveis” (idem, ibidem).

Certamente, isso era impossível. Daí, dois anos depois foi emitida a Lei Complementar nº 101 (a muito mal chamada “lei de responsabilidade fiscal”), dando prioridade total ao credor financeiro, isto é, aos bancos, sobre tudo e qualquer coisa ou pessoa – do funcionalismo até a merenda escolar, passando pela educação, saúde e investimentos produtivos.
Atualmente, há quem diga que essa lei é “intocável” - o que é a mesma coisa que dizer que os privilégios descomunais e indecentes do setor financeiro, sobretudo externo, são intocáveis.
Não foram as únicas, mas ficaremos por aqui na descrição das torturas financeiras e administrativas da “renegociação” das dívidas estaduais por Fernando Henrique. É o suficiente para mostrar o teor da “federalização” dessas dívidas.

O resultado foi um desolador panorama nas administrações estaduais, inclusive nas mais bem intencionadas. Nem por isso, como é mostrado na tabela desta página, a dívida diminuiu, exceto algumas das menos importantes.
São Paulo passou mais de uma década repassando 13% de suas receitas – no entanto, sua dívida aumentou R$ 93,7 bilhões; a dívida de Minas, nas mesmas condições, foi acrescida de R$ 33,3 bilhões (entre os seus correligionários e os bancos, Fernando Henrique sempre preferiu os últimos).

O Rio de Janeiro – que passa 12% de suas entradas – teve sua dívida acrescida em R$ 20,5 bilhões; o Rio Grande do Sul, com 13% de suas finanças confiscadas desde 1998, viu sua dívida crescer, nos últimos 10 anos, em R$ 22,6 bilhões.

O que fazer? Mudar o índice de correção monetária é um bom começo. Mas não vai resolver o problema, se quisermos ter administrações estaduais que atendam ao povo - que as sustenta e que as escolheu -, na dimensão das necessidades reais, e não apenas uma tintura de medidas progressistas, restritas devido à falta de verbas.

John Maynard Keynes, em 1919, ao analisar um problema análogo (as dívidas impagáveis dos países europeus após a I Guerra Mundial) propôs o cancelamento mútuo de todas as dívidas (cf. J.M. Keynes, “As Consequências Econômicas da Paz”, trad. Sérgio Bath, IPRI, São Paulo, 2002, pág. 100).

A proposta acabou se realizando da pior forma: em 1931, por bancarrota desses países e dos EUA, exatamente a situação que Keynes queria evitar.

Considerando que os Estados brasileiros – ao contrário dos países europeus - fazem parte do mesmo Estado nacional, seria até mais indicada, no nosso caso, essa solução. Até porque, todas as dívidas dos Estados com o Tesouro Nacional montam a pouco mais de R$ 380 bilhões. Nos últimos oito anos, o governo central repassou aos bancos cerca de R$ 1,5 trilhão. Portanto, bastaria deixar essa lógica sem lógica do “superávit primário” e dos juros jupiterianos – ou diminuir um pouco a fé nesse credo herético.

Pode até não ser isso – mas que alguma coisa tem de ser feita para abater essa dívida, aliás, injusta, não há dúvida. Há poucos dias, até o notório sr. Pastore, que não pode ser acusado de simpatias por alguma causa minimamente progressista, clamou – e nas páginas do “Estadão” – pela redução da dívida da Grécia.

Por que isso valeria para a Grécia e não para os Estados brasileiros? Só porque eles são brasileiros?
Senão, conviveremos com a miséria, a doença e a ignorância até o dia em que o povo, apesar de sua quase infinita bondade, perca a paciência.
CARLOS LOPES

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