sexta-feira, 25 de março de 2011

O serpentário do neoliberalismo: um estudo da idiotice econômica (5)


O “mercado financeiro” é um “mercado” de dívidas infinitas, que crescem em espiral – ou exponencialmente – supondo-se uma eterna “valorização”, ao mesmo tempo em que saqueia o único setor que realmente cria valor: o produtivo
CARLOS LOPES

Alguns economistas descrevem a situação depois de 1971, quando o sistema financeiro internacional deixou de ter lastro no ouro, como um “sistema financeiro fiduciário”. Achamos o termo inadequado. A palavra “fiduciário” descreve operações que são baseadas na confiança entre as partes – ainda que uma ou algumas das partes possa não ter alternativa senão “confiar” na mais forte financeiramente.
 
Podemos formular a questão de modo mais simples – ou, se não, pelo menos mais direto: a relação fixa do dólar com o ouro constituía-se num limite à especulação. Essa relação expressava – e era – um compromisso dos EUA com os outros países capitalistas em torno da preservação de um sistema financeiro comum. Em 1971, os EUA romperam esse compromisso – pode-se dizer: declararam guerra financeira aos outros participantes do sistema (isto é, todos os outros países capitalistas), aproveitando-se da vantagem (e que vantagem!) de ter o monopólio de emissão da moeda do sistema.
 
Se os EUA quebraram o compromisso que era a própria base do sistema, o que, então, mantém ainda esse sistema – mesmo tendo como lastro, para usar a expressão de De Gaulle, “papel pintado”? Como pôde (e pode) continuar existindo um sistema que é uma agressão aberta a todos os seus participantes, com exceção de um (nas palavras do atual presidente do banco central dos EUA, Ben Bernanke, “… o governo dos EUA tem uma tecnologia chamada máquina de impressão - ou, hoje, o seu equivalente eletrônico -, que permite a ele produzir quantos dólares quiser, essencialmente sem nenhum custo” - isto é, com os outros países arcando com esse custo)?
 
Esse sistema de guerra financeira aberta é mantido pela guerra propriamente dita (ou ameaça de guerra, isto é, por uma guerra oculta). O sistema financeiro atual, com o monopólio de um país sobre a emissão de sua moeda sem lastro, só existe devido ao poder militar dos EUA – e é impossível subestimar o fato de que os EUA ocupam militarmente aqueles países que poderiam ser os seus principais rivais no campo imperialista, a Alemanha e o Japão. Um economista norte-americano usou uma frase de efeito para sintetizar essa situação: “Os EUA são hoje uma superpotência militar, mas um anão econômico” (F. William Engdahl, “The Big Black Hole in the Dollar’s Future”, SCF, dez./2009).
 
Não vai nisso uma subestimação do poder financeiro e econômico que os EUA ainda conservam no mundo. Engdahl refere-se à economia nacional dos EUA, que, evidentemente, não deixou de existir – mas que entrou em liquidação, com seus monopólios, em busca da maximização dos lucros, transferindo unidades produtivas para outros países. Estavam, assim, liquidando a própria base de operações a partir da qual expandiram-se pelo mundo.
 
O chamado “pós-industrialismo”, sub-ideologia neoliberal segundo a qual os EUA deveriam ser um “país de serviços”, explorando os baixos salários industriais de outros países, significou a desindustrialização parcial e a redução violenta dos salários também dentro do país (ver Ian Fletcher, “The Death of the Postindustrial Dream”, Huffington Post, julho/2010).
 
Foi isso o que, a princípio, os neoliberais propagandearam sob o rótulo de “globalização” - cuja única face verdadeira, inextricavelmente ligada a esse processo, foi a “globalização” financeira, predatória e rapinante.
 
Porém, os interesses das multinacionais não são necessariamente (em verdade, rarissimamente são) os interesses de uma economia nacional, mesmo aqueles das economias onde têm a sua matriz. E as economias nacionais não desapareceram só porque os neoliberais propagandeavam que elas tinham deixado de existir - inclusive, a economia nacional dos EUA.
 
Por consequência, como sustentar uma economia nacional, se os empregos industriais estavam indo para fora do país, os salários estavam em queda e os EUA passaram a ser importadores dos produtos de suas próprias empresas, além dos produtos das empresas de outros países?
 
Em outras palavras: quem ia comprar mercadorias para fazer a economia nacional funcionar? Onde a população iria arrumar dinheiro para fazer suas compras – numa economia onde 70% do PIB, pelo menos, é oriundo de gastos com o consumo pessoal e que, do ponto de vista mundial, representa 50% do consumo de produtos industriais e agrícolas?
 

ESPECULAÇÃO

 
Para isso o neoliberalismo teve a mesma resposta de sempre, ou, melhor, a mesma falta de resposta: a especulação. Aumente-se o crédito a limites insustentáveis; se a população não tem dinheiro para comprar as mercadorias dos monopólios multinacionais – sejam os importados, sejam os ainda fabricados internamente – endivide-se a população, estimulando-a, inclusive, a gastos completamente supérfluos (era isso o que se chamou “consumismo”).
 
Assim, os empréstimos, as hipotecas (e não somente sobre moradias, mas sobre qualquer coisa que pudesse ser garantia de empréstimos) transformaram-se na mais florescente indústria dos EUA, precisamente devido a um arrocho salarial tremendo.
Para completar, ao mesmo tempo em que os ricos eram aliviados dos impostos, os pobres tinham que sustentar a máquina bélica e burocrática.
 
O economista norte-americano Michael Hudson chamou isso de “suicídio pós-industrial”. Com efeito, “qualquer um dificilmente pode chegar à conclusão de que o problema enfrentado pelo emprego industrial dos EUA é que os assalariados precisam ganhar o suficiente para pagar pelos custos de moradia mais caros do mundo (a FDIC está tentando limitar as hipotecas a 32% do orçamento de quem toma emprestado), pelo serviço de saúde e pela previdência mais caros do mundo (retenção de 12,4% de impostos para a seguridade), pelos altos níveis de endividamento pessoal nos bancos e nas vorazes companhias de cartão de crédito (cerca de 15%) e pelos mais altos índices de transferência da propriedade e maior parcela de riqueza extraída do produto do trabalho e dos bens de consumo (outros 15% ou algo assim). O objetivo dos banqueiros é calcular exatamente quanto seus clientes podem pagar ao setor financeiro-hipotecário - definindo esse valor como tudo que eles puderem dispor além e acima dos custos de subsistência básica” (Michael Hudson, “Krugman, China and the role of finance”, nov./2010).
 
Entretanto, como não ver que, mais cedo do que tarde, esse endividamento crescente e estúpido iria levar à dinamitação da economia? Qual a solução dos neoliberais para tornar “sustentável” essa dívida colossal?
 
Ora, essencialmente, a mesma já referida: que se emitam papéis em cima dessa dívida, e, sobre esses papéis, outros papéis, e assim até o Armagedon; que se vendam esses papéis de papéis aos otários, de preferência com nomes incompreensíveis até para os próprios banqueiros e especuladores - “credit default swap”, “collateralized debt obligation”, etc., etc. (James Cayne, o capo do Bear Stearns, e George Soros confessaram sua ignorância sobre o que é um “credit default swap” - mas esse deve ser o lado normal deles; o anormal é que vendiam esses papéis aos bilhões).
 
Assim, com a compra e venda eterna dessa papelada, ancorada na propriedade alheia (a rigor, na capacidade dos proprietários de casas, e outros bens, de pagar a dívida provocada pela queda na sua renda e induzida pelas miragens prometidas por fundos e bancos), todos seriam felizes para sempre sem precisar da indústria, esse trambolho que só serve para atrapalhar a especulação.
 
Se o leitor achou isso parecido com uma “pirâmide”, acertou. O “mercado financeiro” é um “mercado” de dívidas infinitas, que crescem em espiral – ou exponencialmente – supondo-se uma eterna “valorização”, ao mesmo tempo em que saqueia o único setor que realmente cria valor: o setor produtivo. O neoliberalismo é a idolatria da “pirâmide”. O sr. Madoff não fez nada que os outros – à solta e mandando nos EUA – não tivessem feito e continuem fazendo. Mas, quando chega a crise, é urgente caçar um bode expiatório...
 
O desabamento em dois tempos dessa papelada piramidal - em março (falência do Bear Stearns) e em setembro de 2008 (falência do Lehman Brothers) - não fez com que os vigaristas desistissem. Aliás, nisso estamos de pleno acordo com o ex-vice-presidente do Banco Mundial, Joseph Stiglitz: “Ou mandamos os banqueiros para a prisão, ou a economia não vai se recuperar”.
 
Esse desabamento também não fez com que o sr. Mantega deixasse de falar em um “mercado de debêntures”, isto é, um “mercado” de dívidas com os bancos privados, para financiar as empresas, no lugar do BNDES...
 

ESTABILIDADE

 
Tentamos dar uma ordem mais ou menos lógica a essa descrição, para torná-la compreensível ao leitor. Apenas, advertimos que nem esta pequena dose de lógica existiu, nem foi esta a ordem cronológica: os “derivativos” não surgiram para sustentar a dívida do consumidor norte-americano. Mais exato seria o contrário: o endividamento dos norte-americanos foi uma consequência não somente da redução no salário real, como também da especulação desenfreada do muito mal chamado “mercado financeiro”.
 
Naturalmente, para um mundo delirante como esse, a ideologia adequada teria que ser um delírio.
 
Mas como isso foi imposto aos países dependentes?
 
Nas condições da década de 90, antes de tudo, na falta de um poder que se contrapusesse ao do imperialismo norte-americano e seus satélites, pelo terrorismo. As ilusões só puderam prosperar (?!) porque foram absorvidas por gente economicamente – e, claro, ideológica e psicologicamente – aterrorizada. Nesse sentido, Pinochet não foi uma exceção, mas um pioneiro.
 
Os outros países dependentes, antes, foram quebrados pelos juros da dívida na década de 80 – e tratou-se a inflação e a estagnação desses países como se fossem responsabilidade exclusiva deles, e não, principalmente, da feroz espoliação que sofreram.
 
Daí a propaganda da “estabilidade” como se ela fosse um valor em si. Certamente, se perguntarmos sobre a estabilidade, todos, exceto os malucos, serão a favor, mas isso porque associaram a palavra a um determinado conteúdo: a estabilidade do bem estar, e, até mesmo, à estabilidade do crescimento. Não passará pela cabeça de quase ninguém que exista quem propugne pela estabilidade da miséria, da estagnação e do roubo.
 
Fora essa associação positiva, a “estabilidade” é uma noção muito boa para a astronomia (“o planeta Marte apresenta estabilidade, o que é um forte indício da ausência de vida”), mas especialmente idiota quando aplicada à economia, ou seja, ao esforço coletivo dos seres humanos para produzir.
 
No entanto, vemos acadêmicos e autoridades, sem se preocuparem em entender o que estão dizendo - e menos ainda em fazer os outros entenderem - falar em “estabilidade monetária”, “estabilidade macroeconômica”, “estabilidade financeira” e até em “estabilidade jurídica” (como se as leis e contratos não tivessem de ser adaptados quando há uma mudança na realidade - ou quando prejudicam a coletividade; mas essa “estabilidade” jurídica só vale para os monopólios, jamais quando o beneficiado é o povo).
 
Do ponto de vista dos neoliberais é fácil saber o que eles querem dizer com “estabilidade”: que o estado sublime da economia real é tornar “estável” a especulação, servindo como doadora em uma transfusão, permanente e perpétua, para bancos e assemelhados; e que não pode haver, jamais, qualquer mudança, pois isso perturbaria a “estabilidade”. Filosoficamente, são a favor da “estabilidade” porque senão a “estabilidade” seria perturbada...
 
Associada com essa propaganda da “estabilidade” tumular, está a de que não progredimos a partir de 1980 porque fomos “irresponsáveis” e não fizemos a “lição de casa”, ou seja, não entregamos a economia a um grupelho monopolista. O fato de que os juros do sr. Paul Volcker, na presidência do banco central dos EUA, quebraram o país, não é uma questão “válida”.
 
O mais interessante, e mais sintomático, é que trata-se de uma “estabilidade” muito peculiar, que significa, sempre, a iminência de uma catástrofe. Tudo é sempre justificado pelo terror a essa catástrofe – aumentos de juros, cacetadas sobre o crescimento, arrocho salarial, isenções fiscais para especuladores estrangeiros, câmbios que só flutuam para beneficiar tubarões externos, leis irresponsáveis que destroem Estados e municípios por restrições orçamentárias, leis de falência que colocam os trabalhadores com direitos abaixo dos banqueiros, superávits “primários” que não passam de sequestro do dinheiro público para transferi-lo aos bancos, atentados aos direitos previdenciários ou trabalhistas, privatização de empresas públicas lucrativas, desnacionalização da economia, e até leis de despejo sumário para proteger especuladores imobiliários, ao invés dos inquilinos.
 
Tudo se justifica pela iminência da catástrofe. Não é uma estranha “estabilidade”, leitor, essa que demanda sempre novas e mais custosas concessões da população, do Estado e do Tesouro para evitar a catástrofe?
 
Pois assim funciona o terrorismo da inflação e sua consequência, o sistema de “metas de inflação” (inflation targeting – tudo nessa miséria é tradução, de má qualidade, do inglês).
 

INFLAÇÃO

 
No Brasil, a aceleração da inflação a partir da segunda metade da década de 50 foi uma consequência da monopolização da economia, que avançou com a entrada e/ou expansão das multinacionais, depois que a Instrução 113, emitida durante a gestão de Eugênio Gudin no Ministério da Fazenda e Octávio Gouveia de Bulhões na Superintendência da Moeda e do Crédito (Sumoc), permitiu a entrada no país de máquinas e equipamentos usados sem cobertura cambial.
 
Na época, até 1964, não havia condição política de estabelecer no país um arrocho salarial. Assim, os monopólios privados recorreram ao aumento de preços – que equivalia a uma expropriação do salário, isto é, a uma queda no salário real. Por isso, falava-se na inflação como expressão de um “conflito distributivo” na economia, ou seja, a uma luta por uma maior parcela da renda nacional entre esses monopólios e os trabalhadores, que, com o salário crescentemente capturado pelos aumentos de preços, recorriam a mobilizações, inclusive greves, para recuperar o seu poder aquisitivo.
 
Naquele momento, havia um outro fator a impulsionar os preços: uma estrutura agrária atrasada que puxava para cima o custo de vida. Daí, entre outras razões, a ênfase do governo João Goulart na reforma agrária.
 
Depois do golpe de Estado de 1964, a política de arrocho salarial e contenção geral do consumo “contribuía ao combate à inflação não porque contivesse a demanda (…) mas, ao contrário, porque permitia que os monopólios aumentassem seus lucros sem ter que entrar em uma luta a morte com os trabalhadores; agora, já não necessitariam tentar enganar a estes com aumentos nominais de salários, aos quais compensavam com novos aumentos de preços (...). Por isso, a contenção salarial não era um mero instrumento de combate à inflação, mas uma exigência fundamental dos monopólios estrangeiros (...). Além disso, apresentava-se como uma condição estrutural do novo padrão de reprodução do capital” (Nilson Araújo de Souza, “A Longa Agonia da Dependência”, Alfa-Omega, 2004, pág. 113).
 
Quando a inflação acelerou outra vez, de 1974 em diante, nitidamente o problema estava, novamente, e de maneira mais evidente, na ação dos monopólios externos.
 
Contra eles, as medidas do antigo monetarismo – a contenção pura e simples da demanda – eram inúteis, pois a reação dos monopólios à queda nas vendas era, precisamente, a de usar seu domínio sobre o mercado para aumentar os preços, portanto, aumentar a inflação. É isso o que explica a aceleração inflacionária que vai da segunda metade da década de 70 até a década de 90.
 
Naturalmente, existe uma solução racional para esse problema: aumentar os investimentos do setor não-monopolista, isto é, do setor nacional, privado e estatal, da economia para aumentar sua capacidade produtiva e sua parcela na produção e no mercado, vis-à-vis os monopólios. Em síntese, isso significa combater a inflação através do crescimento.
 
Mas, nesse momento, o país foi estrangulado pela crise da dívida externa, provocada pelo aumento nos juros dos EUA.
Também para isso havia uma solução racional: reagir a uma medida unilateral dos EUA, decretando a moratória da dívida externa e usar os imensos recursos imobilizados – a rigor, desperdiçados – no pagamento de juros para financiar os investimentos, a expansão da economia com base no setor não-monopolista, nacional.
 
Como os leitores sabem, isso não foi feito. Daí, amargamos taxas crescentes de inflação que entraram pela década de 90. Quando não se enfrentam os problemas, arca-se com as consequências. Foi assim, ou de modo semelhante, que a inflação transformou-se num espantalho para impor os maiores absurdos nos países em que a equipe econômica foi possuída pelo neoliberalismo. Em alguns deles - poucos, aliás - instituiu-se o já citado sistema de “metas de inflação”.
 

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