quinta-feira, 3 de fevereiro de 2011


"Isso é obra de Mubarak"

A luta ao meu redor na praça Tahrir era tão terrível que podíamos sentir o cheiro do sangue. Os homens e mulheres que estão exigindo o fim da ditadura de 30 anos de Mubarak – vi jovens mulheres arrancando pedras do pavimento enquanto caíam rochas ao seu redor – lutavam com imensa coragem que, mais tarde, se converteu em uma crueldade terrível. Ao final, o governo informou que houve 3 mortos e 637 feridos; segundo a cadeia Al Jazeera os feridos chegavam a 1500. “Isso é obra de Mubarak”, disse-me um atirador de pedras ferido. “Ele conseguiu que os egípcios se voltassem uns contra os outros por apenas nove meses mais de poder. Está louco. Vocês do Ocidente também estão loucos?”

A contra revolução do presidente Hosni Mubarak entrou em choque ontem com seus oponentes em meio a uma chuva de pedras, paus e barras de ferro, em uma batalha que durou todo o dia no centro da capital que ele afirma governar entre dezenas de milhares de jovens que – e aqui está a mais perigosa das armas – brandiam a bandeira do Egito no rosto de seus adversários.

A luta ao meu redor na praça Tahrir era tão terrível que podíamos sentir o cheiro do sangue.

Os homens e mulheres que estão exigindo o fim da ditadura de 30 anos de Mubarak – vi jovens mulheres arrancando pedras do pavimento enquanto caíam rochas ao seu redor – lutavam com imensa coragem que, mais tarde, se converteu em uma crueldade terrível. Ao final, o governo informou que houve 3 mortos e 637 feridos; segundo a cadeia Al Jazeera os feridos chegavam a 1500.

Alguns arrastavam homens de segurança de Mubarak pela praça, golpeando-os até que o sangue saído de suas cabeças tingisse sua roupa. O Terceiro Exército egípcio, famoso por cruzar o Canal de Suez em 1973, não pode – ou não quis – sequer cruzar a praça Tahrir para ajudar os feridos. Milhares de egípcios gritavam – e isso é o mais próximo de uma guerra civil –, lançavam-se uns contra os outros como lutadores romanos, e simplesmente empurraram as unidades de paraquedistas que “vigiavam” a praça para cima de seus tanques e veículos blindados que logo acabaram sendo usados como escudo de proteção.

Um comandante de tanque Abrams – e eu estava somente a três metros dele – simplesmente se esquivou das pedras que ricocheteavam no tanque, saltou para dentro do veículo e fechou a escotilha. Os partidários de Mubarak subiram então no tanque para atirar mais pedras contra seus jovens e enlouquecidos antagonistas.

Suponho que é o mesmo em todas as batalhas, ainda que (ainda) não tenham aparecido as armas; o abuso de ambos os lados provocou uma chuva de pedras dos homens de Mubarak – sim, eles começaram – e logo os manifestantes que tomaram a praça para pedir a saída do ancião começaram a quebrar o pavimento e atirar as pedras de volta.

Quando cheguei à “linha de frente”, ambos os bandos estavam gritando e atacando-se entre si, o sangue corria por seus rostos. Em um certo momento, antes que passasse o choque do ataque, os partidários de Mubarak quase cruzaram toda a praça em frente ao monstruoso edifício Mugamma – uma relíquia do esforço nasserista – antes de serem rechaçados.

Agora que os egípcios estão lutando contra os egípcios, como devemos chamar a esta gente perigosamente furiosa? Os mubarakistas? Os “manifestantes” ou, de maneira mais inquietante, a “resistência”? Por que é assim que se chamam a si mesmos os homens e mulheres que estão lutando para derrotar Mubarak. “Isso é obra de Mubarak”, disse-me um atirador de pedras ferido. “Ele conseguiu que os egípcios se voltassem uns contra os outros por apenas nove meses mais de poder. Está louco. Vocês do Ocidente também estão loucos?”

Não recordo como respondi a pergunta. Mas como poderia me esquecer de ter visto, umas poucas horas antes, o “especialista” em Oriente Médio, Mitt Romney, ex-governador de Massachusetts, responder a pergunta “Mubarak é um ditador”, da seguinte forma: “Não, é uma figura de estilo monárquico”.

A imagem do rosto deste monarca era levada em cartazes gigantes, uma provocação impressa, para as barricadas. Distribuídos pelos funcionários do Partido Nacional Democrático (PND), muitos eram levados por homens que portavam distintivos e cassetetes da polícia. Não havia dúvida sobre isso porque eu tinha dirigido desde o deserto até o Cairo, enquanto eles se organizavam em frente ao Ministério do Exterior e do edifício da rádio estatal, na margem oeste do Nilo. Havia alto falantes ligados com canções e chamados de vida eterna para Mubarak (uma presidência muito longa, por certo) e muitos estavam sentados em novas motocicletas, como se estivessem inspirados nos capangas de Mahmud Ahmadinejad depois das eleições iranianas de 2009.

Só quando passei o edifício da rádio é que vi milhares de jovens homens entrando desde os subúrbios do Cairo. Havia mulheres também, a maioria vestia o tradicional traje negro; algumas poucas crianças entre elas, caminhando por trás do Museu Egípcio. Disseram-me eu tinham tanto direito a estar na praça Tahrir como os manifestantes e que tentavam expressar seu amor por seu presidente no lugar onde ele havia sido tão profanado.

E tinham razão, suponho. Os democratas – ou a “resistência”, dependendo do ponto de vista – tinham expulsado os homens das forças de segurança desta mesma praça na semana passada. O problema é que os homens de Mubarak incluem alguns dos mesmos capangas que eu vi então, quando estavam trabalhando com a polícia de segurança armada para atacar os manifestantes. Um deles, um jovem de camisa amarela, cabelo revolto e olhos brilhantes avermelhados, levava a mesma barra de ferro que usava na semana passada. Uma vez mais, os defensores de Mubarak estavam de volta. Até cantavam o mesmo velho refrão: “Com nosso sangue, com nossa alma, a vós nos dedicamos”.

Caminhei ao lado das fileiras de Mubarak e cheguei à frente quando eles começaram outro ataque à praça Tahrir. O céu estava cheio de pedras. Estou falando de pedras de 15 centímetros de diâmetros, que golpeavam o terreno como peças de morteiro. Deste lado da “linha” chegavam os opositores de Mubarak. Eles se dividam e golpeavam as paredes ao nosso redor. Neste ponto, os homens do governo voltaram e correram em estado de pânico enquanto os opositores do presidente os empurravam para frente. Fiquei parado de costas para a janela de uma agência de viagens fechada – lembro um cartaz para um fim de semana romântico em Luxor e no “Vale das Tumbas”. Mas as pedras caíam como chuva, centenas delas ao mesmo tempo, e logo um novo grupo de homens estava ao meu lado, eram os manifestantes egípcios da praça. Mas em sua fúria já não gritavam “Abaixo Mubarak” e “Mubarak Negro”, mas sim “Alá Akbar” – Deus é grande –, grito que escutei seguidamente a medida que o dia avançava.

Um lado gritava Mubarak, o outro Deus. Não tinha sido assim 24 horas antes. Dirige-me para um terreno mais seguro, onde as pedras já não estouravam e fique entre os opositores de Mubarak.

Seria exagerado dizer que as pedras obscureceram o céu, mas por momentos havia centenas de pedras voando pelo céu. Destroçaram totalmente um caminhão do exército, quebrando as janelas e suas laterais. As pedras partiam das ruas paralelas à rua Campollion e de Talaat Harb. Os homens estavam suando, com faixas ensaguentadas na cabeça, gritando seu ódio. Muitos traziam trapos brancos nos ferimentos. Alguns eram levados derramando sangue por toda a rua.

E um incrível número usava o traje islamista, calças curtas, sacolas cinzas, largas barbas e gorros brancos. Gritavam Alá Akbar mais forte e bradavam seu amor a Deus. Sim, Mubarak conseguiu a proeza. Colocou os salafistas contra ele, junto a seus inimigos políticos. Volta e meia agarravam alguns jovens, tinham os rostos inchados de socos e gritavam temendo por suas vidas. A documentação encontrada em suas roupas provava que trabalhavam para o Ministério do Interior de Mubarak.

Muitos dos manifestantes – jovens seculares, abrindo caminho entre os atacantes – tratavam de defender os prisioneiros. Outros – e eu vi um monte de “islamistas” entre eles -, davam socos nas cabeças destes pobres homens, usando grandes anéis em seus dedos para cortar a pele e fazer o sangue escorrer por seus rostos. Um jovem, com uma camiseta vermelha rasgada, e o rosto inchado de dor, foi resgatado por dois homens fortes, um dos quais o colocou, quase sem roupa, sobre seu ombro, abrindo caminho entre a multidão.

Assim se salvou a vida de Mohamed Abdul Azim Mabrouk Eid, policial de segurança número 2.101.074, do governo de Gizé – seu passe de segurança era azul com três pirâmides estampadas. Outro homem foi resgatado da multidão enfurecida, agarrando-se o estômago. E por trás de um esquadrão de mulheres, chovia pedras.

Houve momentos de farsa em meio a tudo isso. Na metade da tarde, quatro cavalos montados por partidários de Mubarak entraram na praça, junto com um camelo – sim, um camelo verdadeiro que deve ter sido trazido das pirâmides. Seus jóqueis, aparentemente drogados, estavam caindo. Três horas mais tarde, encontrei os cavalos pastando ao lado de uma árvore. Perto da estátua de Talaat Harb, um menino vendia Agwa – um delicioso pão egípcio -, enquanto do outro lado da rua estavam paradas duas figuras, uma menina e um menino, segurando bandejas de papelão idênticas. A bandeja da menina estava cheia de pacotes de cigarro. A do menino, estava cheia de pedras.

Houve cenas que devem ter provocado dor pessoal e angústia para aqueles que as experimentaram. Havia um homem alto, musculoso, ferido no rosto por uma pedra, cujas pernas se dobravam ao lado de uma cabine de telefone. E o soldado do veículo blindado que deixou que as pedras voassem ao seu lado até que saltou para a rua junto com os inimigos de Mubarak, abraçando-se a eles, enquanto as lágrimas corriam por seu rosto.

Não sei realmente quem ganhou a batalha da praça Tahrir ontem. Ao entardecer, as pedras ainda golpeavam as ruas e as pessoas. Depois de um tempo, comecei a me agachar quando vi passar dois pássaros.

ROBERTO FISKTradução: Katarina Peixoto

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