quinta-feira, 1 de abril de 2010

SOBRE OS TUCANOS,NAZIS - E ALGO DE BOM HANNAH ARENDT(1)

Pregam uma suposta “transparência” nos negócios estatais, quando tudo o que fazem é torná-los mais opacos, para se apropriar do que não lhes pertence


Há algum tempo, na campanha eleitoral de 2006, tive que
abordar a conhecida miséria tucana sobre o Estado, segundo a qual aquilo que é “público” e aquilo que é “estatal” são duas coisas muito diferentes, aliás, completamente distintas. Naturalmente, se o que é estatal não é público, a consequência é a privatização do Estado, sua posse por alguns grupos que nem mesmo formam uma classe: alguns banqueiros, alguns negocistas, e, certamente, os atraves- sadores, com suas comissões, propinas e subornos, auferidos ao mercadejar com os bens públicos. À população caberia o papel de sustentar, com seus recursos, com seu dinheiro, esse Estado privatizado, isto é, os oligo-parasitas e os oligo-comensais do patrimônio público. É apenas mais uma infâmia que venham pregar uma suposta “transparência” nos negócios estatais, quando tudo o que fazem é torná-los mais opacos, para se apropriar do que não lhes pertence.

Na época, a questão apareceu numa declaração do então candidato tucano - que poderia ser repetida até com mais ênfase pelo atual candidato tucano - de que o serviço público (isto é, o atendimento à população pelo Estado) não necessita de funcionários públicos. Daí as “oscips” de apaniguados para se apossar de hospitais construídos e sustentados por dinheiro público; as terceirizações, com a avacalhação da democracia (bem ou mal a população exerce algum controle sobre o Estado; mas quem controla esses receptáculos de recursos públicos, exceto os seus beneficiários?); o arrocho salarial, o trabalho “temporário” (isto é, sem vínculo empregatício decente), os planos de rebaixamento do mérito e da vida dos professores - e outras formas de privatização e corrupção.

Se os serviços que é obrigação do Estado disponibilizar para a população - que paga por eles - devem ser realizados exclusivamente por particulares, por privilegiados que embolsam o dinheiro do Estado, isso se dá apenas porque tucanos e outros espécimens acham que o Estado deve ser privado, e não público - isto é, deles e de alguns ratos de rabo mais grosso.

Não é para melhorar os serviços públicos que essa rataria quer privatizá-los, mas para roubar o Estado. Tanto é assim que o resultado dessa política sempre foi a destruição dos serviços públicos – mesmo se esquecêssemos o período em que Fernando Henrique ocupou o Planalto, temos a situação atual em São Paulo para demonstrá-lo, a catástrofe na Saúde, Educação, Transporte, Obras e em tudo mais que é, e não pode deixar de ser, público, pois diz respeito, precisamente, à atuação do Poder Público.

Hoje, aberrações à parte, é fácil perceber que aquilo que é estatal, inevitavelmente, é público. Mas não é tão imediata a percepção de que tudo o que é plenamente público, necessariamente, terá que ser estatal ou não será plenamente público. Não se pode subestimar o estrago perpetrado pelo neoliberalismo até mesmo na mente de algumas pessoas bem intencionadas, estrago ideológico, sem aderência à realidade, pois até hoje nada do que os neoliberais pregavam, ou pregam, mostrou-se verdadeiro ou real. Pelo contrário, toda a sua ideologia é uma mera aparência, uma mera encenação, nada transparente, para esconder a ação de se apossar do que é público.

O fato é que algumas coisas que antes eram óbvias, deixaram de sê-lo, não porque deixassem de ser verdadeiras, mas porque foram vítimas da clepto-verborréia neoliberal. Por exemplo, como se chama, até hoje, o regime de exploração dos transportes urbanos ou do espectro eletromagnético (isto é, rádio e TV)? Como sabe o leitor, chama-se, a esse regime, “concessão pública”. Por quê? Porque são serviços públicos que o Estado, por não poder realizá-los imediatamente ou por alguma outra razão, “concede” que particulares os façam, os explorem, no seu lugar. Uma “concessão pública”, literalmente, é uma concessão do que é público ao que é privado, do que é estatal ao que não é estatal. Está implícita a ideia - levada ao paroxismo por aqueles donos de Tvs que se acham também donos da parcela do espectro eletromagnético que lhes foi concedida - de que há uma restrição, maior ou menor, ao caráter público do serviço, na medida em que se faz uma “concessão” ao que não é estatal. Mas, se a ideia básica é a de que, quando o Estado não realiza diretamente esses serviços, eles são públicos em sentido restrito, conclui-se que esses mesmos serviços somente são plenamente públicos quando é o Estado que os realiza. Realmente, se compararmos a antiga Rádio Nacional com a TV Globo, restarão poucas dúvidas a esse respeito.

Numa sociedade do tipo da nossa, a existência do que é público e estatal não implica, como jamais implicou, na abolição dos negócios privados. Pelo contrário. Em que, por exemplo, o monopólio estatal, público, na área petrolífera implicou em impedir o desenvolvimento das empresas privadas? Pelo contrário, a garantia de que certas áreas são públicas, isto é, estatais, faz com que, em torno delas, se desenvolvam os negócios privados. Significativamente, foi depois do fim do monopólio estatal do petróleo - e com o ignominioso Repetro - que 5 mil empresas privadas brasileiras dessa área foram destruídas.

Certamente, há uma restrição estabelecida pelo que é público, pelo que é estatal - mas essa restrição diz respeito aos monopólios privados. Como nem os neoliberais defendem publicamente o monopólio privado (pelo contrário, sua ação pelos monopólios privados, sobretudo os estrangeiros, é sempre encoberta com palavras como “mercado” - aliás, “livre” mercado - “concorrência”, “competição” ou “competitividade”), conclui-se que essa restrição é a favor dos negócios privados. Ou seja, até os neoliberais sabem perfeitamente que o monopólio privado é antissocial, antieconômico - e anti-privado, na medida em que destrói a maioria, aliás, quase todos os negócios privados. Já tivemos várias tentativas de criar indústrias de automóveis no Brasil. Tecnologicamente, não há grandes dificuldades - e nem somos inferiores em capacidade à China ou à Coreia do Sul. Mas, depois que Roberto Campos, no primeiro governo da ditadura, privatizou a Fábrica Nacional de Motores, o monopólio das montadoras multinacionais passou a esmagar qualquer tentativa nesse sentido.

A ideia de que o Estado administra sempre mal, depois da atual crise norte-americana somente pode caber na cabeça de anormais. No entanto, essa é, exatamente, a ideologia tucana, e, como mostrou em São Paulo, a de Serra.

Como disse o engenheiro Virgílio Freire, que conhece bem as multinacionais (foi diretor da Motorola-Nortel, da BellSouth e presidente da Lucent Technologies): “Quiséramos nós que as telecomunicações em São Paulo tivessem o mesmo nível que a extração, o refino e a distribuição de combustíveis. Logo, não é verdade que ‘o Estado não sabe administrar’. (...) a Petrobrás é eficiente, respeitada aqui e lá fora, e não sofre de apagões de combustível. Apenas para reforçar o argumento, e o Banco do Brasil? É estatal e luta no mercado bancário em condições de igualdade, dá lucros enormes e ninguém acusa a diretoria do BB de ser inepta devido ao fato de a empresa ser estatal. Então, esta ideia de que empresa estatal é por definição lenta, obsoleta, com gente preguiçosa e ineficiente, é uma inverdade”.

Se isso é verdade para as empresas, também o é para a administração direta - aliás, é mais ainda para a administração direta. Uma empresa privada pode – em regime, evidentemente, privado - ser bem administrada. Já um serviço público, somente consegue ser bem administrado se for administrado publicamente, pelo poder público, com a participação democrática da população. Que controle tem a população sobre as “oscips” tucanas que açambarcam hospitais públicos em São Paulo? Quem as fiscaliza? Onde estão as suas prestações de contas? Quem determina que serviços e em que quantidade elas prestarão? Não é por acaso que esses serviços, logo que são entregues aos bandos de apaniguados que embolsam verbas públicas, se deterioram rapidamente - aliás, aceleradamente.

O Estado pode e deve possuir empresas, mas ele, em si, não é uma empresa. Por isso, a ideia de jegue de que o Estado deve ser administrado como uma empresa ou que, para que ele seja bem administrado, é preciso obrigatoriamente ter um empresário – que não seja “um político” - na cabeça do Estado, jamais teve qualquer sucesso em lugar algum do mundo.

Um empresário pode ser um bom governante, assim como um operário pode ser - desde que não substitua os interesses gerais da população, que são os do Estado, pelos interesses das suas empresas. Ou desde que perceba que os interesses de suas empresas estarão melhor contemplados se o estiverem os interesses gerais do país.

Nesse sentido, nosso vice-presidente, o empresário José Alencar, é, provavelmente, um modelo para a História do Brasil, alguém que colocou os interesses públicos acima dos seus interesses particulares - ou que percebeu que estes, os interesses de um empresário nacional, não são antagônicos, pelo contrário, aos interesses gerais da nação.

Certamente, Alencar jamais disse que o Estado teria que ser administrado como uma empresa ou que somente empresários podem bem governar.

Essa era a propaganda que cercava o atual senador tucano Tasso Jereissati, desde a primeira eleição em que concorreu - em 1986, para o governo do Ceará. Até hoje, que se saiba, Jereissati sempre usou esse tipo de grife, atribuindo a ela a sua eleição - e esquecendo rapidamente o apoio decisivo do então governador Gonzaga Mota, um dos próceres que preferiram unir-se a Tancredo ao invés de sustentar a ditadura.

Mas vejamos o resultado desse suposto “Estado-empresa”, que não foi nada aprazível para a terra do quase homônimo de nosso vice-presidente - o primeiro grande romancista brasileiro, José de Alencar.

Um cearense ilustre, mestre Hélder Câmara, glória do xadrez nacional, fez-nos chegar há alguns meses um pequeno balanço, publicado em outubro na imprensa de Fortaleza pelo jornalista Messias Pontes. Permita-nos o leitor a citação mais ou menos longa, porém muito iluminadora sobre o caráter de certos adeptos do “público mas não estatal”, ou, melhor, “estatal mas não público”.

Lembra o jornalista que, em nome de uma suposta eficiência empresarial do Estado, Jereissati, “desmontou o Estado cearense contra a vontade da maioria dos cearenses: sem consultar quem quer que seja, acabou com o planejamento agrícola ao extinguir a Cepa – Comissão Estadual de Planejamento Agrícola; a Codagro – Companhia de Desenvolvimento Agropecuário - igualmente foi extinta sem dar satisfação a ninguém; a pesquisa também foi mandada pras cucuias com a extinção da Epace – Empresa de Pesquisa Agrícola do Ceará; a assistência técnica e a extensão rural também foram vítimas do descaso do então governador, já que a Ematerce foi totalmente sucateada (...) o Bandece – Banco de Desenvolvimento do Ceará – foi extinto logo no início do seu primeiro governo; a imprensa oficial, que tinha um dos mais modernos parques gráficos públicos do País foi outra vítima fatal, dado que a Ioce – Imprensa Oficial do Ceará –foi extinta para que todo o serviço gráfico dos Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário ficasse com a iniciativa privada.

Jerfeissati também privatizou “a Coelce – Companhia de Eletricidade do Ceará – por um bilhão de reais quando valia muito mais, já que era uma empresa superavitária e que prestava bons serviços. Tasso prometeu aplicar R$ 600 milhões num fundo previdenciário do Estado, mas esse dinheiro tomou outro rumo. Com a privatização da Coelce, aproximadamente 1.450 funcionários foram demitidos, muitos enfartaram e houve até suicídio por conta das pressões dos novos donos. Isso sem falar da piora substancial na qualidade dos serviços prestados e do abusivo aumento da tarifa. O número de mortes por acidente de trabalho pulou de um para oito por ano, sendo a maioria de funcionários terceirizados, sem a qualificação exigida para atuar no setor. Os desmandos dos novos donos da Coelce foram tamanhos que mesmo a Aneel foi obrigada a aplicar uma multa de R$ 6,9 milhões à empresa.

“Outro grande prejuízo causado por Tasso Jereissati aos cearenses foi a quebra do BEC – Banco do Estado do Ceará. Quando iniciou o seu terceiro mandato, Tasso recebeu o BEC não só completamente saneado, mas principalmente supera- vitário. Em quatro anos o BEC teve de ser federalizado pela importância de R$ 900 milhões para os cearenses pagarem em 30 anos.

Isso tudo em meio a uma sanha verdadeiramente fascista: “no seu período, decisões judiciais eram simplesmente ignoradas, fato inédito na história do Ceará. A truculência contra grevistas e a todos os movimentos sociais organizados que reivindicavam direitos foram uma constante em seu governo. A repressão aos trabalhadores rurais sem terra foi violentíssima” (cf., Messias Pontes, “A verdadeira força do atraso”, O Estado, 14/10/2009).

Ao que se poderia acrescentar um assalto federal: “Só o rombo no BNB, deixado por Byron Queiroz, afilhado de Tasso, foi superior a R$ 7 bilhões”.

Diante da eloquência dos fatos, dispensamo-nos de maiores comentários, exceto o de que esse massacre do espaço público, da ação, do patrimônio e do dinheiro do Estado, de nada serviu aos negócios privados no Ceará. Pelo contrário, foi também um massacre sobre esses negócios privados, na medida em que o desmantelamento do Estado impediu que este atuasse incentivando-os. Em que beneficia aos empresários serem extorquidos por uma empresa parasitária estrangeira - a ítalo-espanhola Endesa - ao invés de pagarem tarifas de energia razoáveis à estatal Coelce?

EM BREVE

Porém, voltemos ao início e à questão: é possível, na sociedade atual, algo que seja plenamente público e não seja estatal?

Na época em que o medíocre adversário de Lula nas eleições de 2006 fez a sua profissão de fé “pública mas não estatal” - repetindo, aliás, inteiramente, as bobagens de seu líder, Fernando Henrique Cardoso - diante de algum debate sobre o assunto, chegamos a planejar um artigo sobre as origens ideológicas (se o leitor quiser, “filosóficas”) dessa indigência.

Havia duas fontes “teóricas”. Uma, bastante obscura, o alemão Jürgen Habermas, autor de “A Transformação Estrutural da Esfera Pública” - tão citado em certos trabalhos quanto pouco lido e menos ainda entendido, não por culpa dos leitores, mas pelo lastimável estilo de Habermas. Há quem identifique obscuridade com profundidade. Rosa Luxemburg podia não estar certa em tudo, e realmente não estava, mas nunca acertou tanto do que quando disse: “quem se expressa de modo obscuro demonstra que não entende do que está falando, portanto tem todas as razões para não falar claramente”.

Mas existe uma fonte “clara” (isto é, que escreve em vernáculo decente) dessa suposta teoria: Hannah Arendt, uma autora que tem como melhor predicado o estilo e não o conteúdo de suas teorias (é possível ler um ensaio de Arendt como se fosse uma espécie de romance – lembro que foi assim que li várias vezes “Anti-semitismo, instrumento de poder”).

Arendt, atualmente, é bastante incensada por tucanos metidos a besta, como aquele ministro das Relações Exteriores que se submeteu orgulhosamente a ser revistado pela polícia dos EUA...

Não chegamos ainda nos nazistas e mal começamos o inventário das virtudes da senhorita Arendt. Porém, leitores, acabou o nosso espaço. Vamos ter que deixar para a próxima a continuação deste emocionante drama.

CARLOS LOPES

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