segunda-feira, 8 de fevereiro de 2010

MULTINACIONAIS DE PETROLEO E TÁTICAS ANTICONCORRÊNCIA(1)

Em tempos de tramitação no Congresso Nacional do projeto de lei sobre o pré-sal, nunca é demais lembrar certos aspectos pouco convencionais do “modus operandi” das multinacionais do setor petrolífero.

Subornos, golpes, traições – e mesmo assassinatos, como alertava Monteiro Lobato em “O escândalo do petróleo e do ferro” – são parte integrante do arsenal que mobilizam sem pejo para garantir interesses e obter privilégios.

O relato que apresentamos nesta edição do HP (e na próxima) é do suplente de senador (1952) e deputado federal (1954 e 1958), pelo PSD da Paraíba, Drault Ernanny de Mello e Silva. Consta do seu livro de memórias publicado pela Editora Record, em 1988, sob o título “Meninos, eu vi...”.

Banqueiro, venturoso proprietário do Recreio dos Bandeirantes e criador da Refinaria de Manguinhos, Drault Ernanny, que faleceu em 2002, não nutria simpatias visíveis pela esquerda e apoiou a deposição do governo constitucional de João Goulart. Porém, seu testemunho tem a força de quem atravessou o caminho da fera e provou generosas doses da manha e da fúria que dispensam aos concorrentes.

O texto nos ajuda a ver com maior nitidez as motivações não declaradas que jazem sob as virações de casaca produzidas, inclusive no passado mais recente, na luta pelo direito dos brasileiros explorarem e utilizarem em benefício próprio o seu petróleo. E, sobretudo, nos aconselha a manter os olhos bem abertos.

S.R.

DRAULT ERNANNY

Estamos no ano carismático de 1945. O presidente Vargas foi apeado do poder no dia 29 de outubro. Vinte e quatro horas depois, o Diário Oficial publicava o decreto e o edital de concorrência pública para a instalação de duas refinarias de petróleo de dez mil barris cada, uma em São Paulo e outra no Rio.

Confesso que fiquei surpreso quando li esse edital. Dias depois, fui convidado a ir à casa de Augusto Batista Pereira, onde encontrei meu amigo Ibá Meirelles. Eles me explicaram a novidade. O governo estava admitindo a presença de empresas privadas no refino do óleo e já me informaram de que, no Rio Grande do sul, a Ipiranga se preparava para entrar na concorrência visando construir a refinaria de São Paulo. Nesse encontro, Augusto e Ibá até me pediram que subscrevesse 2 mil contos de ações da Companhia Ipiranga (muito dinheiro, na época). A conversa estendeu-se por algumas horas, e meu entusiasmo foi crescendo. De repente, no meio do grupo, nasceu a ideia de organizar uma companhia própria e entrar também naquela concorrência. Imaginei, na hora, a criação de uma refinaria de petróleo que tivesse o nome de Distrito Federal. (Depois ela veio a ser a Refinaria de Manguinhos, meu grande sonho concretizado).

Logo no dia seguinte, comecei a tratar de estabelecer um plano de trabalho. Reuni um grupo de lutadores, 59 homens e uma mulher. Seriam os primeiros acionistas da empresa...

O capital não passava de 60 mil contos. Meu grupo tinha metade, ou pouco mais. O desenvolvimento do projeto teve seus altos e baixos. Clemente de Faria, presidente do Banco da Lavoura, subscreveu 2 mil contos e foi eleito diretor-financeiro da refinaria...

No processo de formação da empresa era natural que eu procurasse meus amigos, principalmente os mais abastados. Como diretor de banco, eu tinha amizade com outros banqueiros. Convidei muitos deles a que subscrevessem ações. Diretores de dezoito bancos entraram na minha cruzada. Desses, como se verá mais tarde, dezessete desapareceram, foram implacavelmente perseguidos, sofreram estranhas pressões, tiveram que fechar. Forças poderosas agiam nos bastidores contra os que se arriscavam a desafiar o monopólio das “sete irmãs” neste país.

Somente um dos meus amigos banqueiros se salvou nesta batalha terrível: Clemente de Faria, diretor-presidente do Banco da Lavoura de Minas. Eu próprio sucumbi, fui obrigado a pedir a liquidação extrajudicial do meu banco. A história toda teria assim um sabor de Z, de Costa-Cavras, se fosse levada ao cinema. Vejam como se passou.

Todos estavam convencidos de que Getúlio Vargas, um nacionalista indiscutível, permitira investimentos privados nas refinarias para que as coisas começassem a andar. Se tivesse querido dar a partida somente com capitais do Estado os entraves sobreviriam, sem dúvida. O país tinha seu abastecimento de combustível fornecido pelas companhias estrangeiras, as chamadas “sete irmãs”, que monopolizavam inteiramente o comércio de petróleo e derivados aqui e no resto do mundo.

Logo, trabalhariam desesperadamente para não perder esse filé mignon no maior país do Cone Sul. Procurariam convencer político por político, interessado por interessado, de que a intervenção do Estado no negócio do combustível era nociva. Chegaram a distribuir balanços de refinarias do mundo todo, mostrando como eram deficitárias, com o objetivo de desencorajar possíveis investidores nacionais.

Assim, Getúlio deu aquela largada meio liberalizante, mas dentro de um princípio nacionalista, respeitando o monopólio estatal... Eu achava, no entanto, que as refinarias deveriam ser construídas exclusivamente pelo Governo, mas o presidente Vargas resolveu abrir concorrência e admitir a participação de acionistas privados. Os editais mostravam condições rigorosas, mas não se atinham ao monopólio estatal.

Quando decidi entrar no jogo com meu grupo, convidei para presidente da futura refinaria o major Roberto Carneiro Mendonça, que saíra da presidência do Banco do Brasil e era um homem de prestígio, muito conceituado em nosso meio. Infelizmente ele faleceu.

Resolvi, então, conversar com o general Góes Monteiro e consultei-o sobre a possibilidade de convidar Juarez Távora para assumir a presidência da refinaria. Góes ponderou que Juarez, como subchefe do Estado-Maior do Exército, não poderia ausentar-se de suas funções. Lembrei então do nome de Joaquim Pedro Salgado Filho, recém-saído do Ministério da Aeronáutica. Góes considerou ótima ideia, pois Salgado contava com a aprovação total das Forças Armadas. Assim, fiz o convite, e tive Salgado como presidente da Refinaria de Manguinhos até que ele assumisse sua cadeira no Senado. É preciso explicar que, na época, as refinarias de petróleo do país não podiam escolher presidentes sem a chancela do ministro da Guerra e do chefe do Estado-Maior do Exército.

Mas as exigências eram quase intransponíveis. A refinaria tinha de começar com uma capacidade de dez mil barris diários, o concessionário era obrigado a apresentar todas as especificações gerais do projeto, definir quantidade e qualidade dos produtos, iniciar instalações dentro de trinta dias a contar do ato do Conselho Nacional do Petróleo, contratar a construção e montagem com empresa especializada de reconhecido conceito, utilizar aparelhagens de alto rendimento, estipular os aperfeiçoamentos e novos processos e – aqui estava a parte mais difícil – provar que possuía assegurado o fornecimento de matéria-prima por um período de cinco anos, prova esta que deveria ser renovada quando faltassem dois anos para o término do primeiro período, e assim sucessivamente.

O Conselho Nacional do Petróleo exigia ainda do concessionário dezenas de outras condições, inclusive a de contribuir obrigatoriamente para a pesquisa de jazidas de petróleo com cinquenta por cento do lucro líquido. Também tornava obrigatório depositar, em garantia ao cumprimento dessas condições, no Tesouro Nacional, em dinheiro e títulos da dívida pública federal, a quantia de 4 milhões de cruzeiros, na época uma verdadeira fortuna.

Não era fácil, para qualquer concessionário, provar que dispunha de fornecimento de matéria-prima (óleo cru) por período de cinco anos. Tal suprimento só podia vir do exterior e estava perfeitamente controlado pelas “sete irmãs”. O boicote por parte dessas companhias estrangeiras não demoraria a acontecer. Além disso, outras pressões, partidas dos setores mais variados da própria administração do nosso Governo, começavam a nos constranger. Campanhas contra o meu Banco do Distrito Federal se sucederam na imprensa e nos círculos financeiros do país.

Os postos de gasolina, naquele tempo, eram todos das companhias estrangeiras. Por incrível determinação dos seus gerentes, os funcionários foram instruídos a não aceitar, como pagamento do combustível fornecido, qualquer cheque do meu banco. Diziam ao freguês, que completava o tanque no posto:

- Pode pagar em cheque, contanto que não seja do Banco do Distrito Federal.

Era a campanha de descrédito contra o meu banco, habilmente articulada por aqueles a quem não interessava o surgimento de refinarias brasileiras no Brasil, pois o truste dominava tudo, com altos lucros. Assim, o Banco do Distrito Federal, que devia ser o sexto do país naquele tempo, começou a sofrer corridas constantes. Muitos depositantes acreditavam, mesmo, que eu estivesse à beira da falência, e fecharam suas contas em massa, tornando crítica minha posição financeira.

A campanha dos nossos adversários tinha uma razão lógica. Como eu conseguira a participação acionária de dezoito diretores de bancos, era de se supor que todos eles viessem a ser os financiadores da refinaria em construção. Meus amigos e eu sofremos muito das chamadas “autoridades monetárias” da época. Naquele tempo não existia o Banco Central e o velho Banco do Brasil dominava, praticamente, todo o horizonte financeiro do país. Era seu presidente, nessa ocasião, o industrial Manoel Guilherme da Silveira, dono da fábrica de tecidos Bangu, personagem que todos reverenciavam por causa de suas estreitas ligações com o Governo. Ele resolveu perseguir-me e colocar entraves no meu projeto...

UM JOGO MUITO SUJO

No ano de 1946, aqui no Brasil, votava-se uma nova Constituição para substituir a autoritária “polaca” de Vargas, promulgada em 1937, em plena ditadura. Entre os inúmeros grupos de pressão interessados em incluir dispositivos favoráveis a esta ou aquela tendência do nosso sistema econômico, tinha de aparecer um das “sete irmãs”, e isso não tardou a acontecer. Aliás eu já fora alertado para essa possibilidade pelo meu amigo e sócio, o major Roberto Carneiro de Mendonça. Disse-me ele, certa feita, numa confidência:

- Caro Drault, está vindo por aí um hábil mensageiro das empresas petrolíferas internacionais encarregado de conseguir modificações importantes na Constituição que vem sendo redigida pelo Congresso. O objetivo é facilitar a ação dos estrangeiros na exploração do nosso petróleo.

De fato, pouco tempo depois, aportou às nossas plagas um personagem que até poderia figurar numa dessas novelas de espionagem de Frederick Forsyth ou John Lê Carré. Era o “cabecel” das “sete irmãs”, Paul H. Schoppel, um americano insinuante, extremamente bem-educado, um daqueles profissionais da simpatia, treinado para fazer amigos e influenciar pessoas...

Schoppel chegava onde queria, era apresentado a qualquer pessoa que interessasse aos seus propósitos. Em pouco tempo, insinuou-se na minha intimidade, graças a um alto nome do mundo político carioca, seu introdutor e comparsa. (Prefiro omitir-lhe o nome por respeito aos descendentes, que nada têm a ver com o caso). Ao fim de algum tempo de convivência, admito que o classifiquei no rol das pessoas agradáveis e instigantes. Schoppel me conquistou com sua simpatia, e tal confiança adquiriu que, um dia, tentou me subornar. Ofereceu-me 400 mil contos (verdadeira fortuna, na época) para que eu largasse a campanha do monopólio estatal.

Preciso explicar que não reagi violentamente a essa tentativa de suborno porque já estava prevenido pelos amigos generais Juarez Távora, Góes Monteiro, Juracy Magalhães e Canrobert Pereira da Costa. Eles me haviam aconselhado a tratar Mr. Schoppel com panos quentes, a ir ouvindo suas conversas e insinuações, fingir inocência, até poder desvendar seu plano de “cabecel” das “sete irmãs”...

Schoppel tinha uma boa cobertura aqui no Brasil. Era, aparentemente, um industrial, representava no Rio uma fábrica de tintas, a Aquela, que, passada nas paredes, evitava o mofo. Ninguém poderia acusá-lo diretamente de agente do truste... Chegou a ficar íntimo do ministro João Neves da Fontoura e até, numa ocasião em que tivemos dificuldades no abastecimento de trigo, arranjou dois navios no Canadá e nos tirou do aperto. Em retribuição, foi agraciado pelo Itamaraty com uma comenda. Só muito mais tarde o ministro João Neves da Fontoura veio a saber que esse Schoppel era perigoso...

Um dia, me convidou para jantarmos no Bife de Ouro, o famoso restaurante do Copacabana Palace que, naquela época, reunia o que havia de melhor no Rio. Depois de uma lauta refeição, com ótimos vinhos, sugeriu que nos deslocássemos até um banco na praia, ali mesmo na avenida Atlântica, defronte do hotel, onde poderíamos conversar a salvo de ouvidos indiscretos. Senti que o grande momento chegava. Por fim, Schoppel tinha alguma coisa importante a me revelar, e eu me via disposto a facilitar-lhe a conversa, instruído que estava pelos meus amigos militares.

- O que deseja de mim, afinal? – perguntei-lhe, num arroubo de franqueza.

Ele aí contou tudo. Disse que precisava de minha ajuda para influenciar certos constituintes no sentido de modificar a redação de um artigo da nossa Carta Magna relativo ao aproveitamento dos nossos recursos minerais. Schoppel queria a transigência num pequeno detalhe: acrescentar ao artigo a permissão para que, além das empresas brasileiras, pudessem também receber concessões para explorar o petróleo “as sociedades organizadas no país”. Uma coisinha à-toa, quase imperceptível aos espíritos desarmados, mas suficiente para os propósitos do truste internacional. Àquela altura, as companhias estrangeiras de petróleo que operavam no Brasil já se haviam “transformado” em empresas organizadas no país, com testas-de-ferro nacionais e, portanto, perfeitamente enquadráveis no preceito constitucional acrescido daquela frase maliciosa no seu parágrafo 1º. Era somente isso que o Schoppel queria.

Fingi aceitar a ideia. Meus amigos Góes Monteiro, Juracy, Canrobert, Ibá Meirelles e Juarez me haviam ensinado um bom método de ganhar a confiança de Schoppel. Mostrar-me ingênuo até certo ponto, transigir sem exagerar, pois o bicho era esperto. Assim, concordei:

- Está bem. Vamos escrever isto!

Schoppel redigiu a modificação do artigo 153 da Constituição num papel, com sua letra, que logo guardei. Eu queria uma prova dessa manobra. Saí do encontro alta madrugada e fui bater na casa de Juracy Magalhães. De lá organizamos uma reunião com Juarez Távora e Góes Monteiro. Confabulamos. Mostrei-lhes o papel com a proposta insidiosa de Schoppel. Eles ficaram contentes com meu trabalho. Por fim, eu arrancara do americano uma declaração explícita de suas intenções. A Constituinte de 1946 estava caminhando para sua etapa final. Lembro-me de que o general Juarez Távora, nessa reunião, disse bem alto:

- Vou comunicar tudo isso ao Manduca. (O Manduca era o irmão dele, Manoel Távora, senador pelo Ceará e constituinte)...

Afinal, a Constituição de 1946 foi aprovada e promulgada. Mas, para surpresa nossa, na publicação do Diário Oficial, o tal artigo 153 saiu com estes dizeres:

Art. 153 – O aproveitamento dos recursos minerais e de energia hidráulica depende de autorização ou de concessão federal na forma da lei.

1º - As autorizações ou concessões serão conferidas exclusivamente a brasileiros ou a sociedades organizadas no país etc.

Era a versão proposta por Schoppel, irremediavelmente consolidada em preceito constitucional; enfim, a transigência imperdoável que feria de morte todo o princípio do monopólio estatal no Brasil. E o que era pior, essa frase final, “ou a sociedades organizadas no país”, não tinha sido discutida nem suscitada na Constituinte. Fora criminosamente embutida no texto original pelo serviço de datilografia, antes de ser remetido ao Diário Oficial para publicação.

Jamais se praticara no âmbito do Congresso Nacional indignidade maior. Um golpe de gângsteres. Um acréscimo realizado no setor de datilografia da Câmara, ao arrepio da lei...

A publicação do artigo 153 alterado por datilógrafos venais da Câmara foi um verdadeiro escândalo. Houve, então, uma reunião secreta dos líderes das bancadas quando o assunto veio à baila...

Continua na próxima edição.

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