quinta-feira, 18 de junho de 2009

Sem ideologia do desenvolvimento não há desenvolvimento nacional

“Sem ideologia do desenvolvimento não há desenvolvimento nacional”
Há alguns meses, tentando rastrear as origens do conceito de “nacional-desenvolvimentismo” (não propriamente o seu conteúdo, mas quando ele se condensou sob esta forma, isto é, sob este nome), o ISEB – Instituto Superior de Estudos Brasileiros – apareceu como a mais forte referência. Realmente, se o termo não surgiu (é provável que tenha surgido) das discussões e ensinamentos do ISEB, instituição do Ministério da Educação inaugurada em 1955 e fechada pela ditadura em 1964, foi ali que, sem dúvida, se consolidou e recebeu a forma final.
Foi no correr dessa pesquisa que nosso grande amigo Werner Rempel, vereador e ex-vice-prefeito de Santa Maria, RS, apareceu-nos com os dois colossais volumes de “Consciência e Realidade Nacional”, do filósofo Álvaro Vieira Pinto, publicados pelo ISEB em 1960. Nessa época, o Conselho Curador do ISEB era constituído por Tancredo Neves, pelo brigadeiro Dario Cavalcanti de Azambuja, pelo médico Eurico Costa Carvalho, professor da Faculdade Nacional de Medicina, pelo empresário Guilherme da Silveira Filho, dono da fábrica Bangu, pelo físico José Leite Lopes, pelo futuro primeiro-ministro Hermes Lima e pelo diretor do instituto, filósofo e deputado federal Roland Corbisier.
Há alguns dias, por correio, recebemos novo presente – e nova revelação – por parte de Werner. Lá de sua cidade, enviou-nos ele os dois volumes de “O Conceito de Tecnologia”, publicado em 2005 pela Editora Contraponto e reimpresso em 2008. Infelizmente, Álvaro Vieira Pinto, falecido em 1987, não viu a publicação desta outra sua grande obra – talvez aquela em que ele foi mais à frente, de forma mais clara e profunda, na síntese de uma filosofia nacionalista.
Mas, voltemos à primeira obra.
“Consciência e Realidade Nacional” é um estudo de mil páginas (1.078, para ser exato), em que Álvaro Vieira Pinto aborda as relações entre a ideologia e o desenvolvimento em um país dependente. De certa forma, é um desdobramento - é verdade que um desdobramento gigantesco - de sua aula inaugural no curso de filosofia do ISEB, em 14 de maio de 1956, onde ele estabelece: “sem ideologia do desenvolvimento não há desenvolvimento nacional”.
No livro de 1960, o filósofo estuda duas formas gerais de consciência: a “consciência ingênua”, aquela que concebe a realidade sem perceber que ela própria é condicionada por essa realidade; e a “consciência crítica”, que concebe a realidade pela crítica do próprio condicionamento imposto por essa realidade.
Na sua formulação: “Para a mentalidade ingênua a nação é coisa que ‘já existe’ e precisamente existe enquanto coisa. Está feita, sua realidade é completa, ainda que admitindo-se que sofra modificações ao longo da história. (...) Ora, o que a consciência crítica desvendará é justamente o oposto: é a minha atividade que torna possível a existência da nação. A nação não existe como fato, mas como projeto. Não é o que no presente a comunidade é, mas o que pretende ser, entendendo-se a palavra ‘pretende’ em sentido literal, como ‘pre-tender’, tender antecipado para um estado real. (…) A comunidade constitui a nação ao pretender ser, porque é assim que a constitui no projeto de onde deriva a atividade criadora, o trabalho. A nação resulta, pois, de um projeto da comunidade, posto em execução sob a forma de trabalho”.
Esta citação de “Consciência e Realidade Nacional” foi escolhida, com extrema felicidade, pelos editores como epígrafe de “O Conceito de Tecnologia”. Realmente, não poderia haver epígrafe mais essencial.
Em uma obra posterior, “Ciência e Existência”, de 1979, Álvaro Vieira Pinto dirá: “Para o país que precisa libertar-se política, econômica e culturalmente das peias do atraso e servidão, a apropriação da ciência , a possibilidade de fazê-la não apenas por si mas para si, é condição vital para a superação da etapa da cultura reflexa, vegetativa, emprestada, imitativa, e a entrada em nova fase histórica que se caracterizará exatamente pela capacidade, adquirida pelo homem, de tirar de si as ideias de que necessita para compreender a si próprio tal como é e para explorar o mundo que lhe pertence, em benefício fundamentalmente de si mesmo”.
Nessa obra, ele também formularia: “a criação de uma sociedade justa e humana é o objetivo imediato, final, incondicionado, para o qual o pesquisador tem de contribuir com seu trabalho de estudo e descoberta”.
Álvaro Vieira Pinto era, profissionalmente, médico, professor e pesquisador na Faculdade Nacional de Medicina. No entanto, estudou física e matemática na antiga Universidade do Distrito Federal, cujo reitor, Alceu Amoroso Lima, nomeou-o professor de lógica matemática – a primeira cadeira do país nessa disciplina. Logo, estava lecionando a mesma matéria na Faculdade Nacional de Filosofia, e, em 1945, tornou-se titular de História da Filosofia.
Em 1955, quando o ISEB é fundado, Roland Corbisier convida Álvaro Vieira Pinto para chefiar o departamento de filosofia do instituto.
Quando, em dezembro de 1958, Hélio Jaguaribe forçou uma cisão pela direita no ISEB – sua proposta, já naquela época, era que o “nacionalismo da atualidade” incluísse a privatização de setores estratégicos, como a petroquímica - Álvaro Vieira Pinto não teve dúvida sobre de que lado ficar.
Como lembra Caio Navarro de Toledo, em seu último e mais profícuo período, o ISEB “esteve sob a direção política e intelectual do filósofo Álvaro Vieira Pinto (….) e do historiador Nelson Werneck Sodré”. O mesmo autor observa que “em contraposição aos cientistas sociais da USP – avessos e contrários ao engajamento político –, os isebianos sintonizavam-se com a dinâmica das lutas sociais e políticas presentes na sociedade brasileira dos anos 1950 e 1960”, uma avaliação que Paula Beiguelman, advinda da USP, mas completamente oposta ao espírito dominante nesta universidade, confirmaria plenamente, até por ser exceção.
Certamente, esse compromisso do ISEB com a nação e o povo brasileiros fizeram com que, após 64, ele se tornasse um dos principais alvos da perseguição reacionária e entreguista. Além do fechamento e de um estúpido inquérito - o “IPM do ISEB”, a que seus integrantes foram arrastados - a sede do instituto “foi objeto da sanha golpista. Nos dias seguintes à ‘revolução’ vitoriosa, a biblioteca, os arquivos e os móveis da sede do Instituto foram destruídos. (….) através do ato de vandalismo, a inteligência era repudiada e o pensamento crítico passaria a ser reprimido no país por mais de 20 longos anos” (Caio Navarro de Toledo, “50 anos de fundação do Iseb”, Jornal da Unicamp, 8 a 14/08/2005).
Álvaro Vieira Pinto, cassado pelo primeiro dos atos institucionais, trilhou o caminho do exílio. Porém, em dezembro de 1968, voltou ao Brasil. Dias depois, outro ato institucional fecharia a vida pública por alguns anos. O filósofo se sustentaria com traduções, feitas sob pseudônimo. Publicou, depois, alguns trabalhos importantes. Porém, “O Conceito de Tecnologia” teria que aguardar mais de 30 anos para ser publicado.
Esta é uma pequena coletânea do pensamento de Álvaro Vieira Pinto. Não ficaremos por aqui, o leitor pode ter certeza. Outras virão. Dedicamos esta a Werner Rempel – sem o seu esforço e dedicação, Werner, seria impossível, a nós, contribuir para a recuperação da obra e da memória de Álvaro Vieira Pinto.

“O filósofo do país periférico, existencialmente, não está em face do Nada, mas do Tudo que há por fazer diante do mundo que é seu”
ÁLVARO VIEIRA PINTO
“O papel dos filósofos pertencentes ao meio subdesenvolvido na compreensão de seu mundo, das razões de tal estado e na proposta de rumos e ações políticas e culturais transformadoras da realidade ambiente é decisivo. Para isso, porém, faz-se mister, antes de tudo, compreenderem o que significa ser filósofo no país pobre e dependente. A primeira exigência consiste em admitir que não pode significar a mesma coisa ser filósofo no país desenvolvido, dominador e autônomo e no que ainda vegeta no subdesenvolvimento, na ignorância do saber letrado e na carência de soberania e capacidade de definição e direção de seu processo de existência enquanto ser histórico particular. No mundo subdesenvolvido e na maior extensão analfabeto, o filósofo, para pensar autenticamente a realidade, precisa ser analfabeto. Não que, evidentemente, ignore a habilidade de ler e escrever – mas, sabemos bem não ser exclusivamente esta falta que constitui o analfabetismo -, e sim porque coloca em primeiro lugar, na tentativa de conceber e interpretar o mundo, as condições reais dele, entre as quais se inclui a de ser um mundo de analfabetos. Considerará a acumulação da cultura estranha e as diversas cogitações, passadas e presentes, conhecidas pelo estudo dos livros, uma fonte subsidiária, embora indispensável, para a formação da consciência de si. Mas terá de aprender muito mais com o que vê do que com o que lê. A consciência filosófica só será legítima se explicar o estado do seu meio, não por um reflexo passivo exterior, mesmo verídico, mas pela apreensão da essência do ser social do qual o pensador é parte. O filósofo tem de identificar-se com as massas analfabetas, constituir a figura aparentemente paradoxal do analfabeto alfabetizado, para alcançar as bases nas quais fundar seu pensamento com máximas possibilidades de legitimidade. Tal como têm sido redigidos até hoje os poucos, confusos e irrelevantes ensaios designados no país atrasado pelo nome de “filosofia”, são uma modalidade de alienação cultural em forma praticamente pura. O filósofo, não tendo nada de próprio a pensar, satisfaz-se em respirar os zéfiros divinos provenientes das regiões ocidentais cultas, ricas, pensantes por direito natural. Algumas consequências bizarras, e até cômicas, derivam desta situação. No país subdesenvolvido, o filósofo, como só registra o que foi pensado e dito nos centros metropolitanos, pode ser chamado de tabelião de ideias. A cultura, em conjunto, constitui o cartório dos conhecimentos alheios. Obrigado a colecionar e registrar os produtos do pensamento de origem externa, o filósofo na verdade nunca chega a ser escritor; não passa de escrevente. Realmente, não escreve, porque não consegue ter nada de original para deixar escrito. Apenas lavra uma escritura do que os outros, os sábios estrangeiros, declaram perante ele. No país subdesenvolvido é impossível o surgimento de verdadeiros livros de filosofia. A verdade não consiste na descoberta de algum novo aspecto de ser, mas na fidedignidade das cópias e traslados dos documentos recebidos. A cultura é o conjunto dos registros dos bens intelectuais fielmente reproduzidos, fabricados por pensadores de fora e apenas adquiridos por nativos com especial inclinação e suficiente tempo vago para se dedicarem a este gênero de dissipação espiritual. Não é preciso acrescentar que fazem dessa prerrogativa um valioso título de destaque social. A alienação torna-se o melhor sinal da capacidade intelectual. Brilha com mais nitidez esse papel egrégio se o estudioso não se limitar à exclusiva atividade manducadora, mas se revelar um legítimo expoente do meio desprovido de autoconsciência, engendrando livros, artigos de toda espécie de publicações destinadas a difundir o pensamento dos outros, o que é feito com grande satisfação pelos ressoadores indígenas, pois com esses documentos fica comprovado em registro com fé pública seu convívio com a ciência, as letras e as artes”.
(“O Conceito de Tecnologia”, pág. 45)

“A consciência humilde não é menos rica de conteúdo do que a presunçosa, que se julga mais competente porque acredita ver mais longe. A identificação corrente de consciência pobre com posição social humilde é totalmente errônea. O homem do povo, especialmente o trabalhador manual, em virtude da sua posição, está habilitado a ter uma percepção da realidade que não é menos valiosa, menos expressiva, que a dos representantes das classes dominantes; é apenas outra. Não é, portanto, pelo diâmetro do horizonte a que se estende que se deve avaliar o grau de representatividade da consciência da realidade nacional. Parece-nos que a definição desse grau terá de ser buscada na maneira como a consciência se representa os fatores que a condicionam, na maior ou menor clareza com que inclui na conceituação de um fato objetivo a percepção simultânea das condições e influências que a determinam nesse ato a proceder como procede”.
(“Consciência e Realidade Nacional”, pág. 24)

“O desenvolvimento nacional não é do tipo vegetativo. O país não evolui como os organismos, que retiram do meio alimentos que assimilam para crescer. A analogia do processo do desenvolvimento nacional com o crescimento orgânico é limitada e aproximativa. O crescimento orgânico produz-se segundo leis biológicas precisas para o tipo vital em questão; seu curso está sujeito a estrito determinismo cronológico; se condições adversas o perturbam, o resultado será finalmente o perecimento, sem possibilidade de estagnação permanente ou atrofia indefinida. Já o país cresce num ambiente sem homogeneidade histórica, onde há nações em graus diversos de desenvolvimento, as mais fortes exercendo pressões e influências retardadoras sobre as mais fracas, constituindo assim, um ‘meio’ onde a nação em desenvolvimento deve lutar não contra o determinismo natural uniforme em relação ao qual, como acontece com os seres vivos, está adaptada, mas contra atos insidiosos de concorrência e espoliação estrangeira”.
(“Consciência e Realidade Nacional”, pág. 29)

“...o processo do desenvolvimento apresenta-se como resultado do esforço coletivo, cujo rendimento em cada fase depende, em elevado grau, dos fatores ideológicos que o impulsionam. Ora, podendo-se, na prática, tomar a estes como expressos pela modalidade dominante de autoconsciência comunitária, vemos que, na verdade, o processo do desenvolvimento nacional é função da consciência que a nação tem de si mesma”.
(“Consciência e Realidade Nacional”, pág. 30)

“Chegamos, assim, a precisar um aspecto do conceito de ideologia implícito nas considerações anteriores, mas que convém destacar: o caráter objetivante da ideologia. A consciência se desenvolve ao real na forma de projeto de modificá-lo. Com efeito, sem assumir feição ideológica e sem tornar clara sua intenção objetivadora, a consciência é inoperante. A simples representação não contém forças criadoras, porque se esgota na imagem mental, se encerra na subjetividade, que, sendo privada, não provoca impulsos transformadores coletivos. Para que isto aconteça, é preciso a intervenção de outra espécie de fatores anímicos, os volitivos. É justamente quando a representação concreta do dado real se associa ao ímpeto da vontade que propõe a transformação desse dado, que se realiza na imaginação, graças à fusão do aspecto intelectual com o volitivo, a visão do estado futuro, de um “a fazer”, cuja apreensão plenamente consciente é o projeto, que se constituirá em núcleo da ideologia do desenvolvimento”.
(“Consciência e Realidade Nacional”, pág. 44)

“A análise da estrutura epistemológica da ideologia do desenvolvimento leva-nos a descobrir que a consciência da realidade nacional, que nela se desenha, não se identifica com o ato apreensivo, a mera reprodução subjetiva, mas é, a um só tempo, elaboração dessa representação e desejo de intervir ativamente no estado do real percebido”.
(“Consciência e Realidade Nacional”, pág. 45)

“O filósofo do país periférico não goza da disponibilidade de interpretar o mundo segundo lhe aprouver; nem tem sentido em relação a ele dizer-se que é sujeito à angústia de uma liberdade que não sabe a que se aplicar. Não sofre a vertigem diante do destino abscôndito, o sentimento de culpa da própria finitude, a náusea em face do Nada, simplesmente porque para ele não há o Nada, há o Tudo. Existencialmente, é um homem em face do Tudo. Do Tudo quanto está por fazer no mundo que é o seu”.

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