segunda-feira, 1 de junho de 2009

Cinco anos sem Brizola



Cinco anos sem Brizola e o tesouro que ele nos legouO tesouro e o mandato que Brizola nos legou Carlos Alberto Kolecza Cinco anos depois, o legado ideológico de Leonel Brizola repousa nas camadas ainda lúcidas da entrevada memória brasileira à espera de um lampejo do instinto de sobrevivência. Não pode ser incontornável a perda da consciência de dignidade de um povo. Contra todas as expectativas agourentas, aqui estamos, obrigados à reflexão impensável de como será o trabalhismo sem Brizola.


Brizola não chegou lá, mas graças à sua clarividência e determinação somos os herdeiros do maior tesouro político do Brasil, a doutrina trabalhista. Só por isso, Brizola tem direito a figurar na galeria dos patronos de formação da consciência de cidadania. Depende de nós a preservação do acervo vivo de pensamentos e sentimentos que ainda fará o Brasil acontecer como nação de todos os brasileiros. O trabalhismo de Getúlio, Pasqualini, Jango, Brizola, Darcy e milhões de anônimos, projetou o Brasil na modernidade, e ainda pode evitar que afunde na barbárie. Há, porém, um problema além de nossas possibilidades.


O patrimônio de idéias de nossos pensadores e as realizações de nossos estadistas de nada vale contra a intenção das elites de consumarem o apartheid social. A proibição secreta Desde 64 o trabalhismo está proibido de subir a rampa, uma das tantas decisões secretas dos operadores da “máquina de distribuição de renda para cima” (1), o sistema multissecular de privilégios e injustiças causador de um dos mais perversos índices de exclusão social do mundo.


Contra o trabalhismo movem-se sempre os fantoches dos responsáveis pela desintegração social, a perda do sentido de vida coletiva. Sabem, até mais que nós, do que é capaz o trabalhismo para salvar outro tesouro em perigo, nossa identidade de povo. Além de nós, alguém mais sabe contra quem foi o golpe? Contra mais ninguém. As forças que arrastaram Getúlio ao suicídio e derrubaram Jango apaisanaram-se e prolificaram. Em vez de metralhadoras disparam teorias recauchutadas dos canudos de seus doutorados. Nas casamatas VIPs da sapiência, fabricaram um repelente spray antipovão – o populismo - , sofisticaram o servilismo e legitimaram a exclusão. Perfumaram com fragrâncias contrabandeadas os preconceitos mais perversos e as discriminações mais iníquas.


Transplantaram para os salões da política o manual de bons modos da casa-grande como prêmio à subserviência. Aposentaram os limpa-botas e promoveram a gurus os office-boys dos barões da trambicagem financeira. Solitário, de peito aberto como sempre, Brizola desnudou o choque de neocolonização que homologou a quebra da estratégia de desenvolvimento, o retrocesso dos avanços sociais, a leiloagem do interesse nacional e a revogação do bem comum.


Carta Testamento em punho, amaldiçoou a promessa sinistra de FHC do fim da Era Vargas, o desmonte peça por peça do imenso cabedal trabalhista de ações e desenvolvimento e de solidarismo. Poucos perceberam, na trama lesa-pátria, a proscrição do trabalhismo como projeto – e único – de desenvolvimento com justiça social.


Estamos proibidos de influir nas decisões porque somos inconfiáveis aos artífices do sistema informal de castas em silenciosa implantação, que rebaixa a maioria à categoria de subcidadãos. Querem nos impedir de denunciar a fabricação de ignorância e intolerância, as matérias primas da desestabilização social. O trabalhismo funde a justa indignação diante das mazelas da desigualdade e a inabalável convicção de que um país com tantos recursos tem que dar certo.


A discriminação que sofre é a extensão da que aprisiona o Brasil na dependência e empurra o brasileiro para a marginalidade. A estética da segregação Tentam nos ferir no que temos de mais forte, a autenticidade. Sim, somos o partido dos Agenor, dos João e José, dos Silva, das Maria, Margareth e Filomena, e nos orgulhamos de filiados, militantes e eleitores tão ilustres. Não somos “meio antigos”, viemos de longe. Benditos representantes dos milhões de deserdados que confiam em nós porque ouviram falar de Getúlio, Jango e Brizola.


Não podemos trair essa confiança. De que lado estão os que gratuitamente debocham dos trabalhistas e brizolistas em nome de um código estético segregacionista? Trocaram a ética pela estética? Ou não é tão gratuitamente assim que debocham? Saibam ou não, estão do lado dos 82 coronéis do Exército que derrubaram o ministro do Trabalho em 1954 sob a alegação de que a duplicação do salário mínimo esvaziaria os quartéis. Precisam dos Agenor e das Filomena para destilar racismo social assim como os coronéis, generais em 64, necessitavam de soldados desnutridos e analfabetos para dar ordens absurdas. Em tempo, o presidente que os generais derrubaram em 64 era o ministro do Trabalho em 54: João Goulart. Temos que ser sinceros com os que pretendem juntar-se a nós.


Devem saber de nossa condição de malsinados e das provações que os esperam. Há lugar para tudo e todos no jogo jogado lá em cima, menos para um partido nacionalista. Repararam como Cristovam Buarque foi ridicularizado nas entrevistas durante a campanha presidencial? Assistiram à reprise do deboche do “candidato de uma nota só” por parte de um apresentador global? Por que a alergia da grande mídia à educação como prioridade? A direita ditabranda não tem mais pudor de mostrar a cara no jornalismo.


Quem sabe não é esse o nosso caminho da roça? A deserção da classe média A proscrição do trabalhismo coincide com o colapso induzido da identificação da classe média com os valores brasileiros, primeiro estágio da ruptura dos laços de solidariedade social. O medo torra os neurônios e envenena os hormônios da classe média. Temerosa da perda de status com a ascensão de novos contingentes, ela se conforma com a função de massa de manobra do terrorismo emocional da grande mídia. O casamento do conservadorismo da classe média com o reacionarismo das elites turbinou a estratégia dos Estados Unidos de dizimar os movimentos de emancipação do Terceiro Mundo com golpes militares.


De lá para cá, trancafiada em sua gaiola de latão dourado, presa aos fetiches primeiro-mundistas, cega e surda ao que acontece à sua volta, a classe média impermeabilizou-se ao diálogo. Desertou do Brasil. Não sente falta de debate público e renunciou ao livre pensamento. Esconde que acredita na eficácia da tortura e na terapia de grupo dos esquadrões de morte, desde que aplicadas exclusivamente nas vilas e favelas.


Não por acaso a direita semeia e colhe a superssafra da discriminação dos pobres nos espaços interditados ao trabalhismo. Não dá pé a gosma de preconceitos e discriminações em que bóia a classe média à procura de onde se agarrar. Cúmplice e também vítima da fabricação em massa de ignorância, mete a mão em qualquer arapuca política. Vibrou com o Homem da Vassoura, atirou-se nos braços do Caçador de Marajás, encantou-se com o charme “intelectual” de FHC, por um triz não votou na governadora do Estado campeão de analfabetismo.


Sempre disponível a porra-louquices, leiloaria a Amazônia em troca de uma passagem a Disneylândia. Nacionalismo? Coisa de museu. Interesse nacional? Desde que a Rede Globo diga qual. Espírito público? O que é? Integridade? Tem a ver com propriedade? Educação acima de tudo? Desde que não se gaste com escolas e professores. Bem comum? O meu. Quinze anos antes, a classe média estava pronta para a farra da privatização em troca de um celular. A classe média é o gato que ruge contra as propostas de integração entre o Brasil Legal e o Brasil Real. O muro da intolerância A desgraça de brasileiro desconfiar um do outro respinga do mal-estar da classe média com o Brasil a não ser com o luxo da empregada “de preferência que durma no emprego”.


Secou o sentimento de pertencimento a um mesmo destino. Ela, que deveria dar o exemplo, para cima e para baixo, deixou de se reconhecer como elo de coesão social. Camufla o racismo na reação à cota e disfarça a aprovação a campanhas genocidas contra pobres, índios e adolescentes. Qualquer idéia maluca encontra espaço no travesseiro da classe média. Após a reeleição, a análise da vantagem eleitoral de Lula no Nordeste, uma formadora de opinião global deu o bote no ar: “Não está na hora de separar?” Foi um arroto do pensamento oculto enrustido nas leis secretas do apartheid. Brizola trombou no muro de intolerância que substituiu as grades da truculência.


Nele foi personalizada, a ferro e fogo, a mesma discriminação reservada a quem carrega na pele ou na origem social a tatuagem infame da rejeição. A determinação na luta pelas idéias republicanas de igualdade foi estigmatizada como radicalismo; a capacidade de priorizar o bem comum como demagogia; a lealdade à soberania nacional como xenofobia; o espírito público como caudilhismo; o estadista como estatista. A integridade inatacável nunca inspirou um gesto de reconhecimento de seus detratores. Assim como Getúlio e Jango, foi vilipendiado por sua fidelidade ao ideal de justiça social, não por seus defeitos ou erros.


Os fios cruzados da história Lembra de Brizola quem acredita no Brasil e vice-versa. Brasil e Brizola estão atados um ao outro pelos fios cruzados da história. Ao se tocar em um, o outro retesa. Era o xamã de um culto cívico que devolvia instantaneamente a alegria de viver num país maravilhoso e conviver com gente boa. Batizou-nos e crismou-nos na crença de que podíamos com nossos braços e nossa inteligência colocar o Brasil nos trilhos sem pedir benção ou licença de fora. Oficiava a fé sagrada sem a qual nenhum povo constrói o direito de assentar sua originalidade entre os demais.


Parecia um ser mitológico capaz de prodígios impossível e de provar que outros tantos estavam ao nosso alcance desde que confiássemos em nós mesmos. Olho no olho, reacendia em volta o sentimento perdido de irmandade. A reação de quem chegava era de assuntar porque ninguém mais falava coisas tão simples e verdadeiras. Com o tempo e por conta própria descobríamos que a verdade é o bem público mais escamoteado do Brasil. A película de democracia encobre a injustiça de exclusão, inclusive do trabalhismo. Não havia diferença entre o que dizia e o que fazia. Atrasava um compromisso quando nos sentia em dúvida e seus olhos faiscavam ao formar a roda de pensação. Nasceu com um defeito – não tinha medo.


Dobrou os chefes militares na Legalidade mas naquele momento os donos do poder decidiram jamais sentar-se com ele para acertar um pacto social de inclusão. A fio de baioneta, tiveram duas décadas de prazo para ossificar o imaginário da exclusão. A pirâmide social rachou de alto a baixo e a pergunta dele bate forte na consciência: por que com tanta riqueza à vista o Brasil não dá certo? O


Mandato Já lamentamos o suficiente que ele não tenha chegado aonde queríamos. Caímos na real, perdemos o grande mensageiro, não a mensagem. O trabalhismo precisa mergulhar no caos da perda do amor próprio de nossa gente, com humildade, para entender as causas do desânimo, da indiferença, do cinismo, da agressividade, do descaso com o que é de todos. Descascou o ovo da serpente.


A degeneração da política, a corrupção desenfreada, a permissividade escancarada, o que tem a ver com a transgressão de todas as normas e a banalização da violência? Que laço se rompeu na relação de confiança de baixo para cima que dilacerou valores e referências? A deslealdade de cima para baixo esfrangalhou a lealdade de um com o outro, de todos com todos. Até que ponto nos contamina a doença maligna que corrói a alma do brasileiro, que não será debelada com donativos sociais, ainda que imprescindíveis nas atuais circunstâncias? Não dispomos mais, a qualquer hora, dos conselhos dele mas carregamos conosco, com a legitimidade que só dele emanava, o mandato que nos delegou: “Nós temos a nossa responsabilidade com a história. Nosso partido é o único com determinação de assumir as grandes causas nacionais. Nenhum partido é tão nacionalista quanto o nosso.


Queremos um país desenvolvido, autônomo, independente. Queremos libertar o povo brasileiro em matéria de oportunidade, de acesso a uma vida digna. O trabalhismo nasceu na Revolução de 30, de uma inspiração do presidente Getúlio Vargas, que foi evoluindo de acordo com o processo social, empenhado em garantir direitos à massa dos deserdados... Nós temos genética, somos uma grande sementeira de ideias em benefício do povo brasileiro. Temos que estar sempre onde está o povo. Existimos para dar voz aos que não tem voz.


Nossa ancoragem é a área deserdada da população. Nosso guia é o interesse público e o bem comum. Há muito preconceito contra nós. Podem dizer e fazer o que quiserem contra nós, mas gente de vergonha na cara nunca fica quieta quando é questionada.... Graças a Deus somos um partido pequeno. O que adianta ser grande no tamanho e não fazer nada?” Somos fracos em quantidade e fortes em qualidade. Aprendemos com ele a não ter vergonha de ser brasileiro nem medo de povo.


Notaram que povo, pátria, nação, nacionalidade, nacionalismo, são palavras que sumiram dos jornais e dos discursos? Estamos em muito boa companhia na relação dos sentimentos refugados pela patrulha ideológica da estética da exclusão. Era de “bom tom” negar escola aos filhos dos pobres até Brizola rebentar o cadeado da discriminação. Entraria na história, lépido e faceiro, de braços com a meninada, pelo portão de milhares de brizoletas e brizolões, se mais não fizesse. E fez muito no enfrentamento de oligarquias e oligopólios. E por isso era ainda mais perigoso.


A história lhe abriria as portas pelo que disse na hora em que era de “bom gosto” calar. O “bom tom” de hoje, de democratizar a ignorância, vai perdurar até surgir outro visionário trabalhista. Qualquer programa de reeducação em massa, de emergência ou permanente, será inócuo sem o selo de qualidade do trabalhismo. O veto das elites originou-se da obstinação de Brizola com a educação.


Um sonho subversivo guiava Brizola, inspirado na saga do menino pobre que rondava escolas entre um biscate e outro. Intuiu que cabe aos filhos da pobreza a missão de civilizar as elites trogloditas. A dissolução social Até a derrapagem mundial, avançava a economia da importação de crescimento e exportação do lucro, e regredia a ética do Brasil Legal em relação ao Brasil Real. O PIB do poder não precisou desemperrar as fronteiras sociais, a não ser nos pontos de passagem da fila de emprego. Crescer para dentro é a receita trabalhista. A reação à cota na universidade explicitou a cumplicidade da intelectualidade com a cronificação da desigualdade.


Recomeçou a pressão por reformas para trás. A cargo da grande mídia – as cadeias de jornal, rádio e TV – a agenda do apartheid desdobra pontualmente as etapas de estranhamento e animosidade entre os do meio e os de baixo. Os do meio aprendem a se alhear da realidade, a suspeitar de pobres, a se desligar do ambiente subjetivo comum e a curtir um estilo de vida exótico. Os de baixo são ensinados a se julgar inferiores, incapazes de assimilar os códigos de compreensão da realidade. Em retribuição à aceitação da sina sem-nada podem comparar dinheiro a longo prazo e juros estratosféricos nos bancos disfarçados de lojas de eletrodomésticos.


Os de cima comemoram a separação dos brasileiros. Dia a dia, a consciência social vai embotando, a capacidade de pensar encolhendo. “Fomos perdendo a condição de país lúcido” (2). A grande mídia cozinha o caldo do diabo em fogo colorido, à espera da hora de jogar a culpa da criminalidade nos pobres.


Vem aí o mega-espetáculo da guerra civil social. Brizola detectou a conivência da monstruosa engrenagem de desinformação com a dissolução social. Sacou a manha da estratégia de desconstrução da vontade pública e implantação em seu lugar da opinião pública prefabricada.


Sua última grande investida contra a ditadura da palavra ainda será reconhecida como precursora da causa da democratização da informação. Investigou a interdição do espaço público ao debate e flagrou a intimidade dos barões da imprensa com a fina flor da pilantragem financeira. Em represália, foi catalogado como um fóssil vivo da política.


O muro de lá caiu, a esquerda retrocedeu em pânico e em parte se vendeu. Só Brizola continuou forcejando contra os muros intocáveis daqui, ermitão solitário pregando no deserto os mandamentos da brasilidade. Não faz muito, nós mesmos vacilamos diante do falso dilema socialismo X trabalhismo.


Não prestamos atenção quando falou que o trabalhismo é o socialismo caboclo,moreno, mulato, mestiço. Escapamos da reforma ideológica meia sola. Do reconhecimento dos direitos sociais à montagem da infraestrutura de desenvolvimento o Brasil chegou até aqui podendo ser ainda mais pelas mãos do trabalhismo. No balaio da memória social não há outra opção à exclusão.


Não podemos esquecer que a execração que penamos tem outro destinatário – o povo brasileiro – e isso deve nos orgulhar em vez de abater. Andamos desanimados mas não podemos baixar a cabeça. Nossa melhor homenagem a Brizola nesta hora é a reflexão sobre tudo que o trabalhismo deu ao Brasil e aos brasileiros e o muito que ainda oferece como sementeira das ideias de igualdade. Estamos proibidos de subir a rampa, não de ajudar o povo a se organizar.


(1) Definição do historiador Thomas Skidmore para o modelo político-econômico histórico do Brasil.


(2) Consequência – segundo Brizola – da contínua lavagem ideológica a que a população é submetida.

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