sábado, 11 de abril de 2009

Déficit, espoliação econômica e máquina de guerra dos EUA (2)


A questão que Michael Hudson examina nesta segunda parte de seu artigo (publicado, sob o título original “Economic Meltdown: The ‘Dollar Glut’ is What Finances America’s Global Military Build-up”, na revista do Centre for Research on Globalization, 29/03/2009) já foi abordada por nós há alguns meses. Com a irrupção da crise nos países centrais, em especial nos EUA, apareceram os vendedores (e os compradores) de ilusões. Uma delas, comprada a preço particularmente barato por alguns, é a de que o caos especulativo provocado por anos de neoliberalismo não pode ser superado por medidas no terreno nacional, ou seja, os governos nacionais nada podem e nada têm a fazer para proteger seus países do parasitismo da oligarquia financeira, sediada principalmente em Wall Street, e do abismo em que ela própria se lançou. Assim, só com um acordo “internacional”, com uma regulação “internacional” e com medidas “internacionais”, isso seria possível.
Tal regulação “internacional” seria tão internacional, no máximo, quanto o dólar é a moeda “internacional”. Naturalmente, não existe nada internacional no mundo de hoje que esteja acima das nações, pois este mundo é composto, precisamente, por nações. A cooperação internacional é a cooperação entre nações, assim como a espoliação internacional é a espoliação de uma ou de algumas nações sobre outras.
Parece óbvio, mas, analisemos com mais vagar a questão.
Se fosse hoje impossível às nações enfrentar a espoliação especulativa – isto é, a invasão de dólares para comprar empresas públicas e privadas e para negociar com papéis na Bolsa e no “mercado” de títulos públicos –, a consequênacia seria, evidentemente, condenar todos os países do mundo à impotência, como se eles fossem meros apêndices do capital especulativo, principalmente norte-americano. No entanto, tudo está aqui de cabeça para baixo: são os monopólios financeiros que dependem, para continuar seu brutal enriquecimento parasitário, de extrair recursos a granel de outros países. Não são estes países que dependem do capital especulativo para sobreviver. Afirmar o contrário seria a mesma coisa que declarar que são as lombrigas que permitem a seus hospedeiros viver, e não o contrário.
Certamente, tal concepção revela, sobretudo, submissão à oligarquia financeira dos países centrais – esmagamento diante de um poder que, na atualidade, jamais foi tão frágil, jamais foi tão falido e jamais foi tão minguante desde que essa oligarquia existe. É interessante observar que é precisamente no momento em que mastodontes como o Citibank e a GM estão em bancarrota, que tal ideia é posta a circular. O motivo é relativamente simples: é a eles que tal superstição beneficia, ao mesmo tempo que prejudica os países, povos e governos, especialmente os da periferia do sistema, mas até mesmo alguns países centrais. A rigor, tal expectativa fantasiosa beneficiaria exclusivamente à oligarquia financeira norte-americana.
Hudson demonstra que, ao contrário, a única solução para recuperar a soberania de cada país sobre sua economia é a ação de cada governo, representando a sociedade, neste sentido. Como muitas coisas abafadas pela enxurrada neoliberal, depois de explicitado isso parece evidente: que regulação “internacional” pode existir se ela não for consequência da regulação que cada país estabeleça em prol do interesse público? Absolutamente nenhuma – e depositar as esperanças de que o FMI estabeleça tal regulação “acima” dos interesses da oligarquia financeira norte-americana, já é quase escorregar para o ridículo. O FMI foi, desde o início, e continua sendo, o guardião, mais precisamente, o leão de chácara, da hegemonia financeira desta oligarquia sobre os demais países. Exatamente por isso vários governantes, inclusive o presidente Lula, têm proposto a abolição do dólar como moeda “internacional”.
Realmente, rebaixar a economia dos demais países a tributárias do dólar é somente ressuscitar o sistema que os romanos impunham aos gauleses e outros povos, sob nova forma. A antiga, aliás, era bem mais honesta – e menos predatória. Mesmo assim, todos sabemos como o Império Romano acabou.
C.L.
MICHAEL HUDSON *
A pergunta decisiva é: o que podem fazer os países para enfrentar esse ataque financeiro? Um sindicalista basco me perguntou se eu acredito que o controle de movimentos especulativos de capital asseguraria que o sistema financeiro atual poderia servir ao interesse público, ou se é necessário uma nacionalização direta para desenvolver melhor a economia real?
Não é simplesmente um problema de “regulação” ou de “controle de movimentos do capital especulativo”. A questão é como as nações podem atuar como verdadeiras nações, em seu próprio interesse, em lugar de serem manipuladas para servir a qualquer coisa que os diplomatas dos EUA decidam que é de interesse dos Estados Unidos.
Qualquer país que trate de fazer o que os EUA têm feito durante os últimos 150 anos, seria acusado de ser “socialista” – e isso por parte da economia mais anti-socialista do mundo, com exceção de quando chamam “socialismo para os ricos” ao resgate para seus bancos, isto é, da oligarquia financeira. Essa inflação retórica quase não deixa outra alternativa senão a nacionalização direta do crédito como serviço público básico.
Sem dúvida, a palavra “nacionalização” tem-se convertido em sinônimo de resgate de empréstimos tóxicos dos maiores e mais imprudentes bancos, e resgate de hedge funds e contrapartidas não-bancárias perdidas no “capitalismo de cassino”, que joga com derivativos que a AIG e outras seguradoras ou participantes do lado perdedor desse jogo não podem pagar. Semelhantes resgates não representam uma nacionalização no sentido tradicional do termo - devolver o crédito e outras funções financeiras ao domínio público. É o contrário. Imprimem-se mais títulos do governo para entregá-los – junto com o poder auto-regulador – ao setor financeiro, bloqueando a disponibilidade de que a cidadania recupere essas funções.
Focalizar o tema como uma escolha entre democracia e oligarquia leva à questão de quem controla o governo que faz a regulação e “nacionaliza”. Se quem decide é um governo cujo banco central e os principais comitês do Congresso que se ocupam das finanças são dirigidos por Wall Street, não se ajudará a dirigir o crédito para usos produtivos. Simplesmente continuará a era Greenspan-Paulson-Geithner de mais e maiores obséquios para seus eleitores financeiros.
A noção de “regulação” da oligarquia financeira é assegurar que desreguladores estejam instalados em posições chave. Apesar do anúncio de Mr. Greenspan de que finalmente viu a luz e que se deu conta de que a auto-regulação não funciona, o Tesouro segue dirigido por um funcionário de Wall Street e a Reserva Federal [banco central dos EUA] por um lobista de Wall Street. Para os lobistas, a verdadeira preocupação não é a ideologia em si – mas o interesse próprio de seus clientes. Podem escolher bobos de boa vontade, especialmente personalidades prestigiosas do mundo acadêmico. Pois são só testas de ferro, dirigidos por seguidores de Milton Friedman na Universidade de Chicago. Tais indivíduos são alocados para que sirvam de “porteiros” nas principais revistas acadêmicas para excluir ideias que não sirvam aos lobistas financeiros.
Essa desculpa para excluir o governo de uma regulação que tenha sentido, prega que as finanças são tão técnicas que só alguém da “indústria” financeira é capaz de regulá-la. Para piorar as coisas, se faz a afirmação adicional contra-intuitiva de que uma característica da democracia é que o banco central seja “independente” do governo eleito. Na realidade, claro está, isso é o contrário da democracia. As finanças são um ponto crucial do sistema econômico. Se não são reguladas democraticamente em função do interesse público, são “livres” para serem capturadas por interesses especiais. De modo que isto se converte na definição oligárquica de “liberdade de mercado”.
O perigo é que os governos permitam que o setor financeiro determine como se aplicará a “regulação”. Os interesses especiais querem ganhar dinheiro com a economia, e o setor financeiro não passa de um modo extrativo. Este é seu plano de marketing. As finanças atuais atuam de maneira que desindustrializa as economias, não as fortalecem. O plano é: austeridade para a mão de obra, a indústria e todos os setores com exceção das finanças, como nos programas do FMI impostos a desventurados países do Terceiro Mundo. A experiência da Islândia, Letônia e outras economias “financiadas” deveria ser examinada, como lição objetiva, ainda que somente por estarem nos primeiros lugares na lista do Banco Mundial em termos de “facilidade para fazer negócios”.
A única regulação que tem sentido provém de fora do setor financeiro. De outra maneira, os países sofrem com o que os japoneses chamam de “filhos do céu”: reguladores selecionados das fileiras dos banqueiros e seus “idiotas úteis”. Ao retirar-se do governo, voltam ao setor financeiro para receber postos lucrativos, “compromissos para conferências” e remunerações afins. Como troca, regulam a favor de interesses especiais, não do público em geral.
O problema dos movimentos do capital especulativo vai além da elaboração de um conjunto de regulações específicas. Depende do alcance do poder do governo nacional. Os Artigos de Acordo do Fundo Monetário Internacional impedem que os países restaurem os sistemas “de tipos falsos de câmbio” que muitos retiveram durante os anos cinqüenta e inclusive nos anos sessenta. Era uma prática generalizada que os países tivessem uma taxa de câmbio para bens e serviços (às vezes várias taxas de câmbio para diferentes categorias de importação e exportação) e outra para “movimentos de capital”. Sob pressão americana, o FMI impôs a ficção de que existe uma taxa de “equilíbrio” que por casualidade é a mesma para bens e serviços como para movimentos de capital.
* É ex-economista de Wall Street especializado em balanço de pagamentos e bens imobiliários no Chase Manhattan Bank (agora JPMorgan Chase & Co.), Artur Anderson e, depois, no Hudson Institute. Em 1990 colaborou no estabelecimento do primeiro fundo soberano de dívida do mundo para Scudder Stevens & Clark. Hudson foi assessor econômico chefe de Dennis Kucinich na campanha primária presidencial democrata e assessorou os governos dos EUA, Canadá, México e Letônia, assim como o Instituto das Nações Unidas para Formação e Pesquisa. Destacado professor e pesquisador na Universidade de Missouri, na cidade de Kansas, é autor de numerosos livros, entre eles “Super Imperialism: The Economic Strategy of American Empire

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