sexta-feira, 20 de fevereiro de 2009


O testemunho do mais eminente ministro da Agricultura soviético

Benediktov: A URSS na época de Stalin e depois dele - (1)


Em 1980, o jornalista soviético V. Litov preparava alguns programas radiofônicos sobre a Índia com Ivan Alekssandrovitch Benediktov, ex-embaixador da URSS naquele país. Porém, em suas conversas com Benediktov, conta o jornalista, “não consegui conter-me e comecei a colocar para Ivan Alekssandrovitch questões sobre um tema que me interessava mais”.

O tema era o passado e o presente da URSS. Benediktov havia sido ministro (comissário do povo) da Agricultura de 1938 a 1943 e, depois, de 1946 a 1955; ministro dos Sovkhozes (as fazendas estatais) de 1955 a 1957; outra vez ministro da Agricultura de 1957 a 1959, antes de ser nomeado embaixador na Índia (1959-1967) e na Iugoslávia (1967-1970). Portanto, convivera pessoalmente com Stalin, Molotov, Kaganovitch e outros dirigentes da época em que a URSS construía o socialismo, assim como Kruschev e algumas figuras que ficaram conhecidas posteriormente.

Operário têxtil na época da Revolução Russa, Benediktov formou-se em engenharia agronômica e economia agrícola em 1928 e foi um dos pioneiros da coletivização da agricultura no Usbequistão, onde exerceu a vice-presidência da república. No cargo de comissário do povo, foi o responsável pela formação dos estoques agrícolas soviéticos que alimentaram o país durante a II Guerra Mundial.

A partir de 1953, ficou conhecido por suas divergências com Kruschev, que assumiu a primeira-secretaria do PCUS após a morte de Stalin, sobre a condução da agricultura. Já nesse ano, seu plano de aumentar a produtividade das áreas agrícolas é rejeitado por Kruschev, que prefere o aumento extensivo da produção – através da exploração nas então chamadas “terras virgens”.

Porém, somente seis anos depois Benediktov é afastado do ministério. Começa, então, sua trajetória na diplomacia.
Em 1981, Litov terminou suas entrevistas com Benediktov, que morreria em 1983. Porém, essas entrevistas somente foram publicadas em 1989, na revista “Molodaya Gvardia”. Como explica Litov, “Ivan Alekssandrovitch não se opôs à publicação das suas declarações, apesar de duvidar fortemente que tal fosse possível. Nisto verificou-se que tinha toda a razão: todas as minhas tentativas de ‘colocar’ a entrevista numa revista literária, mesmo na versão mais truncada, resultaram num fracasso. No entanto, apesar de ter perdido uma esperança real, continuei a insistir: pretendia demonstrar ao antigo comissário do povo que as suas apreciações pessimistas eram inconsistentes e, eventualmente desse modo, fixar um alicerce para o prosseguimento ulterior do tratamento literário das suas memórias. Passados alguns meses após ter recebido mais uma rejeição por parte da redação de uma conhecida revista, Ivan Alekssandrovitch faleceu... As motivações para continuar a luta caíram por si próprias e entreguei o original ‘à crítica roedora dos ratos’”.

Naturalmente, como Benediktov esclarece em suas entrevistas concedidas a Litov, os revisionistas acusavam Stalin daquilo que eles próprios faziam – no caso, tentar abafar um testemunho de inestimável importância histórica. Ao não conseguir responder ao tranquilo depoimento do ministro da Agricultura de Stalin, uma demolidora denúncia dos falsificadores da História – mais demolidora ainda porque seu entrevistador está em posição oposta ao entrevistado – eles o suprimiam, como se isso apagasse a verdade dos fatos. Sobre esta, o leitor poderá julgar por si mesmo.

A tradução das entrevistas de Benediktov pode ser encontrada no excelente site “Para a história do socialismo” (http://hist-socialismo.blogs.sapo.pt). O texto que hoje iniciamos a publicação foi adaptado ao português do Brasil.

C.L.

LITOV - Desde o final dos anos 70 que se observa uma queda evidente na nossa economia. Nos documentos oficiais ela é explicada quer por dificuldades objetivas, quer por falhas subjetivas. A maioria dos cientistas e especialistas considera que a raiz do mal está na ausência de um autêntico mecanismo econômico de desenvolvimento e gestão da economia e, em especial, da introdução dos avanços científico-tecnológicos... Gostaria de conhecer a opinião de um homem que ocupou um importante cargo na nossa economia num período em que esta registrava das maiores, se não as mais elevadas taxas de crescimento do mundo...

BENEDIKTOV - Temo decepcioná-lo com o meu “conservadorismo” e “dogmatismo”. Considero que o sistema econômico vigente em nosso país até os anos 60 poderia ainda hoje garantir elevadas e estáveis taxas de crescimento, uma orientação firme para a eficácia e qualidade e, como consequência natural, a elevação constante do bem-estar de largas camadas de trabalhadores. Claro, a vida é a vida, algumas coisas teriam de ser mudadas e renovadas. Mas isto refere-se apenas a alguns estrangulamentos e pormenores porque, em geral, o amaldiçoado, pelos economistas, “sistema stalinista”, como você corretamente observou, demonstrou uma alta eficácia e vitalidade. Foi graças a ele que, no final dos anos 50, a União Soviética era em termos econômicos e sociais o país mais dinâmico do mundo. Um país que partiu convictamente do seu atraso, aparentemente insuperável face às potências capitalistas mais desenvolvidas, mas que em alguns setores-chave do progresso científico-tecnológico catapultou-se à frente. Basta recordar as nossas realizações no espaço, o desenvolvimento para fins pacíficos da energia atômica, os êxitos nas ciências fundamentais.

Enganam-se aqueles que pensam que nós conseguimos tudo isto à custa de fatores extensivos e quantitativos. Nos anos 30 e 40, e mesmo nos 50, a tônica, quer na indústria quer na agricultura, colocava-se não na quantidade mas na qualidade; os indicadores mais importantes e decisivos eram o crescimento da produtividade do trabalho mediante a introdução de novas máquinas e a redução dos custos de produção. Estes dois fatores foram colocados na base do crescimento econômico, eram eles que determinavam a avaliação e promoção dos dirigentes econômicos, era exatamente isto que se considerava como o mais importante e como uma decorrência direta dos ensinamentos do marxismo-leninismo. Claro que, hoje, tal “rigidez” e linearidade parecem um pouco ingênuas e também é verdade que naquela altura produziram determinados efeitos negativos. Mas no conjunto a orientação foi tomada de forma inteiramente correta, o que é demonstrado pela experiência das atuais empresas americanas, da Alemanha Ocidental e japonesas, muitas das quais já planificam não só o crescimento da produtividade do trabalho, mas também a redução dos custos de produção num horizonte de vários anos...

O mesmo pode ser dito sobre a esfera social e o clima político-ideológico na sociedade. A massa fundamental dos cidadãos soviéticos estavam satisfeitos com a vida e olhavam para o futuro com otimismo, acreditavam nos seus dirigentes. Quando Khruschev lançou o objetivo de alcançar a mais alta produtividade do trabalho no mundo e atingir as mais avançadas fronteiras no campo do progresso científico-tecnológico, poucos duvidaram do êxito final, tão grande era a convicção nas suas forças e na capacidade de alcançar e ultrapassar a América.

Mas Khruschev não era Stalin. Um mau capitão é capaz de fazer encalhar o melhor navio. Foi o que aconteceu. Os nossos capitães primeiro perderam o rumo, falhando nos ritmos estabelecidos, depois começaram a saltar de um extremo para o outro e a seguir deixaram mesmo escapar o leme das mãos, deixando a economia num impasse. Como não desejavam reconhecer abertamente a sua incapacidade, claramente incompatível com [seus] altos cargos, lançaram a culpa no navio, no “sistema”, montando uma ininterrupta linha de produção de decisões e resoluções sobre o seu “desenvolvimento” e “aperfeiçoamento”.

Por seu lado, os “teóricos” e cientistas começaram a justificar esse carrossel de papel com “inteligentes” considerações sobre um alegado “modelo econômico otimizado”, que, por si próprio, asseguraria de forma automática a resolução de todos os nossos problemas. Aos dirigentes bastaria sentar na cabine de comando desse “modelo”, apertando de tempos a tempos um ou outro botão. Uma ilusão absurda, puramente de gabinete, acadêmica!

LITOV - No entanto, até Lenin incentivou as experiências, a busca de soluções otimizadas...

BENEDIKTOV - Não tem propósito a citação que você faz de Ilitch [Lenin], nenhum propósito. A tendência para as reorganizações e reformas, o constante prurido reestruturador foi classificado por Lenin como o mais infalível sinal de burocratismo, quaisquer que sejam as roupagens “marxistas” de que se veste. Não se deve alvoroçar o povo com “rupturas de sistema” e reorganizações, avisou Vladimir Ilitch ainda no início dos anos 20, recrutem-se pessoas e controle-se a execução real das tarefas, isto será valorizado pelo povo. Este importantíssimo, talvez o mais importante ensinamento leninista sobre como governar, o qual atravessa literalmente todas as últimas obras, notas e documentos de Ilitch, na prática (em palavras é claro que todos estão a favor) está hoje esquecido. Por que nos surpreendemos então que, apesar da avalanche de “amadurecidas” resoluções e reorganizações, as coisas vão de mal a pior em nosso país?

Durante o tempo de Stalin, a palavra de ordem “os quadros e o controle resolvem tudo” era aplicada à vida de forma consequente e firme. Apesar de evidentes erros e falhas (quem não os tem?), foram resolvidas todas as tarefas históricas maiores que se colocaram ao país, seja a criação das bases econômicas do socialismo, a derrota do fascismo ou a reconstrução da economia nacional. Nomeie-me nem que seja apenas um problema, social ou econômico, que Khruschev e os seus sucessores tenham conseguido, já não digo resolver, mas pelo menos atenuar. Por todo o lado o que vemos é toneladas de papel e gramas de obra, não se vê avanço real. Pelo contrário, estamos cedendo posições conquistadas...

Compreenda bem o que lhe digo. Eu não sou contra as reformas ou reorganizações enquanto tais. Eu sou contra que se concentrem nelas as atenções, esperando que mais uma resolução produza resultados milagrosos. É preciso diminuir dez vezes o número de tais resoluções e reorganizações e canalizar todas as forças para um trabalho meticuloso, duro, rotineiro na realização de poucas mas rigorosas e concretas tarefas. Então, sim, surgem os resultados milagrosos, reforça-se a confiança do povo no partido, a qual, infelizmente, está mais abalada a cada ano que passa. Refira-se que aqui não estou descobrindo a América. Era exatamente neste espírito que trabalhava o aparelho estatal-partidário nos chamados anos do “culto à personalidade”. Penso que não é em vão, mas antes com bastante sucesso, que a experiência daqueles anos é estudada por dirigentes das maiores corporações monopolistas do Ocidente.

LITOV - Ivan Alekssandrovitch, perdoe-me pela franqueza, mas as suas considerações parecem-me demasiado simplistas. Depreende-se das suas palavras que, em última instância, tudo depende de quem está à frente do país... Não se estará a atribuir dessa forma uma espécie de força demoníaca ao fator subjetivo, o que, sem dúvida, contraria os pressupostos fundamentais do marxismo-leninismo?...

BENEDIKTOV - Lenin, segundo a sua lógica, “contrariou os pressupostos fundamentais do marxismo-leninismo” quando, após o fim da guerra civil, declarou que para a vitória do socialismo na Rússia era apenas necessário “nível cultural” dos comunistas. Em outras palavras, aptidão para governar o País, em relação ao que [os comunistas] eram “gotas d’água num mar de povo”. Isto era afirmado em condições de uma terrível destruição, fome, de um atraso medieval no campo, numa situação em que o País, citando as palavras de Lenin, lembrava “um homem espancado até à morte”!

A esmagadora maioria dos cientistas e especialistas, tanto na Rússia como no exterior, hipnotizados pelos chamados “fatores objetivos”, apelidavam publicamente o plano de Lenin de “uma ilusão doentia”, uma aposta nas “forças demoníacas do partido bolchevique”. Os demônios são demônios, mas o fato é que nós construímos o socialismo em prazos curtíssimos, apesar de todos as “sábias corujas”, com os seus graus e títulos acadêmicos.

Mas as analogias históricas não convencem ninguém. É preferível falar do presente. Mesmo no atual sistema econômico, temos dezenas de empresas, quer na indústria quer na agricultura, que estão ao nível mundial e em certos aspectos até o superam. Veja, por exemplo, a unidade de construção metalomecânica em Ivanov, dirigida por Kabaidze, ou o famoso kolkhoz do presidente Bedulia.

A condição mais importante, decisiva para o êxito dos setores mais avançados (navios-capitânea) da nossa economia é o nível de direção, a competência profissional do diretor ou do presidente. Se Kabaidze ou Bedulia não prepararem os seus sucessores, tudo começará a descarrilhar, resvalando para o nível medíocre e cinzento que predomina no nosso país. Daqui conclui-se que a raiz do mal não está no sistema econômico existente, nas condições que oferece às pessoas com talento, capazes de fazerem milagres (!), mas no que se costuma designar como “fator subjetivo-pessoal”. Muito se fala entre nós sobre o aumento do papel deste fator no socialismo. Trata-se de fato de uma constatação correta, só que o papel deste fator não pode ser entendido de forma simplista e cor-de-rosa. Um dirigente inteligente e competente acelera substancialmente o desenvolvimento de uma empresa, de um ramo, de um país; da mesma forma que um fraco e medíocre o trava e o atrasa gravemente. Por isso, os quadros dirigentes têm de ser submetidos a uma exigência rígida e a um controle constante e global da sua evolução profissional, ideológica, moral e política. Sem isto o socialismo não só não se realiza como, pelo contrário, perde a sua superioridade histórica.

Falar da criação de um “novo sistema” é falar de um sistema de grande escala, amplamente disseminado e profundamente refletido, de revelação, promoção e estimulação da evolução de pessoas talentosas em todos os escalões de direção, quer estatais quer partidários. Se conseguirmos preparar e “munir” os altos objetivos com algumas dezenas de milhares de Kabaidze e de Bedulia, o país realizará uma forte arrancada. Se não, continuará a marcar passo ao som da fanfarra das habituais resoluções e reorganizações. A principal tarefa partidária e, em grande parte, do aparelho de Estado, deve consistir exatamente na descoberta e promoção de pessoas com talento. Ora, neste momento só se pensa nisto quase em último lugar, dedicando-se praticamente todo o tempo à preparação das habituais decisões e resoluções e de sonoras iniciativas para as propagandear.


Porém, mais do que isso, as pessoas talentosas e brilhantes são preteridas em favor dos obedientes, dóceis e medíocres que irrompem agora até em cargos ministeriais. E quando “em cima” tudo está de pernas para o ar, “em baixo” as coisas não andam. Não me surpreendo em nada com o aumento do descontrole nos processos econômicos e sociais na sociedade, com o enfraquecimento da disciplina, da consciência e responsabilidades dos trabalhadores comuns, com a disparada do que hoje se costumam chamar de “fenômenos anti-socialistas”. Repito, a principal causa dos nossos males está na baixa abrupta do nível da direção partidária-estatal, no esquecimento dos geniais ensinamentos de Lenin sobre a seleção dos quadros e o controle de execução como instrumento fundamental e decisivo de influência partidária.

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